Tempos modernos
A cena parece inusitada, mas bastante corriqueira para os tempos atuais. Num consultório médico uma criança entre três e quatro anos aguarda, no colo da mãe, a hora do atendimento. Revela uma inquietude que antecipa a clássica tensão ante o temor que sempre cerca as consultas médicas. Em alguns momentos choraminga diante de alguma contrariedade ou desejo reprimido pela autoridade materna.
A cena desperta a atenção, sobretudo, porque a criança tem como principal brinquedo um aparelho celular que, de forma insistente e revelando habilidade e destreza que, reconheço, não possuo para as parafernálias da informática e da tecnologia, ela desmonta e remonta tirando chips e baterias e os recolocando de forma correta. Usa as teclas para manusear recursos e possibilidades que o engenho oferece. Uma habilidade que revela os tempos modernos quando potencialidades e desencantamentos são cada vez mais precocemente vivenciadas. Experimentam-se as tecnologias e as maravilhas da ciência que, cotidianamente, fecundam nossas vidas e que chegam sem qualquer margem para a criatividade e para a invencionice. Nada pode ser criado ou imaginado porque as memórias virtuais, os minúsculos, mas eficientes apetrechos, já antecipam qualquer possibilidade de criação.
Além das restrições e limites que os brinquedos modernos, ou os engenhos que ocupam esse predicativo, impõem a criatividade, eles trazem ainda o signo do estranho. São produzidos em outras realidades. Trazem características e feições que causam desconhecimento ou indiferença. São, normalmente, solitários e, isso, com certeza, é uma de suas mais dramáticas perniciosidades. Brinquedos que não estimulam ou instigam sociabilidades. Não favorecem a que grupos corram em equipe atrás de bolas de meia ou de gude tornando o mundo mais cantante e mais alegre com gritos e estímulos de jogadas.
Não possibilitam a beleza de uma pipa ou papagaio cortando o céu com sua rabiola colorida soltando sonhos e imaginações entre ondas traçadas em mundos possíveis. Não favorecem a criatividade de pensar universos idealizados para bonecas de pano que, com rostos e roupas coloridas, podem ser construídas e montadas pelas meninas antecipando habilidades e treinando potencialidades de futuro. Não tem a beleza singela de um carro de lata ou de um cavalo de pau que instiga a mente e abre horizontes para viagens fantásticas e aventuras em reinos inimagináveis na realidade.
A menina entra no consultório médico conduzida pela mãe. Enquanto no colo de uma tia jaz uma linda boneca, tristonha e melancólica, a espera dos afagos infantis e reclamando que a beleza não seja consumida, de maneira voluptuosa, pela fúria dos tempos modernos.
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