Surra de cipó de boi
Ao lado de amigos, o deputado pede cerveja ao garçom do Café Chile, no centro do Recife. Um homem se aproxima e dispara o primeiro tiro a uma distância de dois a três metros. Já em pé, o coronel procura sacar sua pistola, mas recebe mais balas, agora quase à queima-roupa. O agressor afasta-se um pouco, atira novamente e corre na direção do hotel onde está hospedado. Vira-se e alveja a vítima que vinha no seu encalço. Fragilizado pelos ferimentos no rosto, no peito, no abdômen o coronel tomba na calçada do hotel, segurando a arma que não conseguira disparar. O agressor é preso em flagrante e levado à delegacia.
Cena de ficção?
Não. Cena real do assassinato de Júlio Brasileiro, coronel da Guarda Nacional, pelo capitão, também da GN, Francisco Sales Vila Nova, na noite de domingo, 14 de janeiro de 1917. Júlio Brasileiro era deputado estadual e fora eleito prefeito de Garanhuns, depois de eleição anulada, nos moldes das falcatruas eleitorais da República Velha. Senhor de terras, eleitores, capangas e cangaceiros, o coronel se vinculara ao general Dantas Barreto, um dos mentores das salvações, movimento que em Pernambuco derrubou, em 1911, a oligarquia de Rosa e Silva, dominante desde o final do século XIX.
Francisco Sales Vila Nova era modesto político em Garanhuns, ligado à família Jardim, que reinara nos tempos de Rosa e Silva. Vila Nova se notabilizara por suas cartas desaforadas, publicadas nos jornais do Recife, e pelo tamanho da língua ao destilar veneno contra adversários. Sem exercer cargo eletivo, ocupou posições de pouco relevo na política municipal. Nunca foi tido como valentão, salvo na agressividade da pena e em conversas de bar. Coitado, pagou caro pelo atrevimento de propalar fatos e fofocas conhecidos à boca pequena.
Levou surra de cipó de boi.
Foi assim. Na noite de sexta-feira, 12 de janeiro de 1917, seis homens – golas das capas levantadas, chapéus com abas caídas -, espreitaram de noite a aproximação de Vila Nova de sua casa, em Garanhuns, vindo do cinema. Aí foi agarrado e açoitado a bengaladas e com cipó de boi. Ninguém o socorreu. Em vão seus gritos ecoarem na vizinhança! No sábado, Vila Nova desfilou na feira sua vergonha, exibiu as marcas físicas deixadas pelo cipó de boi, instrumento feito do pênis de boi, aplicado como castigo cruel e humilhante aos escravos, desde remotos tempos. E também usado por cangaceiros e coronéis.
Quem mandou surrar?
Júlio Brasileiro. O capitão Vila Nova reconheceu familiares do coronel entre os agressores. Por isso, disse a amigos, que iria matá-lo. Ninguém acreditou. Julgavam ser mais uma de suas bravatas de falastrão. Engano. No domingo, ele protagonizou a cena descrita na abertura desta crônica. A morte do mais prestigiado chefe político local, desencadeou a hecatombe de Garanhuns, perversa vingança que se seguiu ao assassinato do coronel. Logo no dia seguinte, 15 de janeiro, mataram em Garanhuns, de bala e faca,18 pessoas, entre as quais, ex-prefeitos e políticos da oposição, além de soldados e capangas. Outros tantos, dos dois lados, foram mortos nos meses seguintes.
Em 1918, Francisco Sales Vila Nova foi absolvido no Recife, por unanimidade dos jurados. Um dos argumentos, muito bem explorado pelo advogado de defesa, José de Brito Alves, foi o uso do cipó de boi, terrível símbolo da nas ruas, escravidão.
Naquele tempo a violência tinha outras causas. Hoje, mata-se diariamente nas ruas de qualquer cidade. Que droga!
Desculpe o leitor se falo assim em pleno Natal.
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