Eu sou como o pão de Saora
Ela chegou de mansinho, sentou-se a meu lado, correu o olhar pelos meus dedos que catavam milho no teclado. Nenhuma palavra disse para não tirar minha concentração. E saiu como entrou, pé ante pé, feito uma garça, deixando suave rastro de perfume. Prossegui a escrita da crônica no silêncio buliçoso da imaginação, sem lhe ter dispensado a merecida atenção.
O pão de Saora, para quem não conhece Cajazeiras, é um pão mal amanhado, com pontas grossas e finas, ora barrigudo, ora delgado. Um pão troncho. Disforme. Sem a beleza aparente dos pães fabricados com brometo, bicarbonato de sódio e outros ingredientes que fazem do pãozinho francês um artigo vistoso, bonito, do agrado do consumidor. O de Saora, não. Nada de uniformidade. Difícil encontrar um igual ao outro. Seu visual não ajuda a seduzir quem quer seja. É feio o pão de Saora. Mas é gostoso.
O pão de Saora tem história.
Desde o meado do século XX ele existe, criado pelas mãos de Severino Cabral dos Santos. Rua acima rua abaixo, lá ia Saora, o balaio na cabeça, carregado de pães. O pão doce assumia formas variadas, um pretexto a mais para o simpático vendedor pilheriar. Eita, morena bonita, dizia, o jacaré não morde, quem come o jacaré é você… Jamais se pensaria naquele tempo em assédio. Sempre de bom humor, mesmo quando jovem Saora nunca foi de enxerimentos. Distribuía pães e alegria nas ruas da cidade, a piada na ponta da língua, desde a época em que todos em Cajazeiras se conheciam pelo nome. E de tanto andar pelas ruas e praças, o pão de Saora virou tradição, enriqueceu o folclore.
E entrou na academia.
Seu criador morreu, o pão ficou. Filhos e netos continuam a honrar o nome do pai, do avô. O cesto de cipó trançado desapareceu da paisagem cajazeirense. A sonora voz do pastor Saora sumiu com seu dono. Sumiram também os gracejos ditos de repente que nem violeiro-cantador do sertão. Os passos largos da inesquecível figura humana deram lugar à bicicleta e, depois, à moto. A mudança acompanhou a modernização, provocando novos meios de comerciar. A entrega dos pães se faz hoje com mais rapidez, em transporte motorizado, um grande isopor mantém o pão quente, o saquinho de plástico afastou o papel de embrulho do meu tempo de criança. Tudo isso mudou. Menos a fórmula, o formato, a maneira de produzir, o gosto do pão de Saora. Por isso, entrou no campus da Universidade Federal e de lá saiu embrulhado na dissertação de mestrado do professor Cabral Filho. E ganhou o mundo em forma de livro: Pão da memória: velhos padeiros, lembranças, trabalho e história”.
O pão continua feio.
O balaio na cabeça foi substituído pelo isopor, a moto dirigida pelos filhos. Mas nada disso mexeu com o gosto, o jeito mal amanhado, o prazer de comer aquele feio pão. Um feio gostoso. Cheio de recordação. Quando se come longe da terra, o cheiro da saudade aflora a cada mordida no bico fino ou grosso do pão de Saora.
Ela voltou de mansinho, o cabelo molhado, a toalha a livrar o pescoço de pingos d’água deixados pelo banho. Pôs as mãos nas minhas costas, em jeito de carícia, correu os olhos nesta crônica. Leu frases. Enxergou palavras e fantasias. A respiração acelerou. Pressenti os lábios abertos num sorriso maroto. Os cabelos úmidos tocaram minha sensibilidade. A voz mansa, sensual, trêmula, sedutora, em sussurro, penetrou no meu ouvido:
– Eu sou como o pão de Saora.
Os textos dos colunistas e blogueiros não refletem, necessariamente, a opinião do Sistema Diário de Comunicação.
Leia mais notícias no www.diariodosertao.com.br/colunistas, siga nas redes sociais: Facebook, Twitter, Instagram e veja nossos vídeos no Play Diário. Envie informações à Redação pelo WhatsApp (83) 99157-2802.
Deixe seu comentário