A paixão de Zé Feliciano
O Seu Zé Feliciano é um sertanejo comum como tantos outros espalhados por estes rincões semiáridos. Forjado na rudeza da vida de morador, por muitos anos, trouxe a marca da subserviência como principal característica. O seu roçado sempre teve as restritas fronteiras da vontade e da benevolência do patrão. A sua criação se limitava a alguns poucos animais de pequeno porte criados com a anuência do dono da terra. O seu nome sempre integrava a relação dos devedores que, anualmente, esticavam suas contas nos misteriosos e inexpugnáveis cadernos do proprietário, a revelia das farturas das safras de algodão.
Mas um dia a vida de Seu Zé Feliciano muda. De morador passa ser dono da terra graças a reforma agrária que desapropria a fazenda onde ele mora. Em seu lote, ele sente a felicidade de definir as fronteiras de seu roçado. Vivencia o prazer de decidir o que plantar. Usufruí da autonomia de escolher quais e quantos animais criará. Seu nome não mais integra a macabra lista de eternos devedores do patrão.
De prosa fácil e jeito afável Seu Zé Feliciano também tem a marca da curiosidade e se interessa por essa conversa de convivência com o semiárido e de uma agricultara sustentável que respeite a caatinga. Sem se preocupar com formulações teóricas e filosóficas sobre o assunto ele descobre que esse pode ser o caminho paras se conviver com as secas sem os assombros e os temores da fome e do degredo. Constrói a cisterna de placa no oitão de sua casa e, mesmo nos anos de chuvas mais escassas, tem assegurada a água de qualidade para beber. Não mais destrói a caatinga com brocas e coivaras passando a respeitar o meio e a cultivar seus roçados raleando a vegetação e não mais usando venenos e agrotóxicos.
Mas o que encanta Seu Zé Feliciano nessa prosa de convivência com o semiárido é a discussão sobre a preservação do que se chama “sementes da paixão”, ou seja, as sementes nativas ou já secularmente adaptadas a esta região e que, através de gerações, sempre foram conservadas em latas de querosene e cuidadosamente guardadas nas meias paredes das casas como garantia para o plantio da próxima invernada. Por gerações a fio, o milho branco, o feijão de corda, o jerimum, o gergelim, a cabaça eram semeadas, nas primeiras chuvadas, nos roçados consorciados e que sempre garantiam uma safra generosa. A conservação das sementes crioulas ou nativas, além de representar um patrimônio genético importante, encerra uma questão política fundamental, não aprisionando os agricultores familiares as teias e amarras dos grandes aglomerados multinacionais que monopolizam o comércio de grãos, hoje geneticamente modificados e que carecem do uso de fertilizantes e agrotóxicos também monopolizados por esses cartéis.
Esta semana encontrei seu Zé Feliciano e ele, com uma tímida satisfação, me revela que, com o início das primeiras chuvas, distribuiu sementes da paixão para vários agricultores familiares. Mesmo com o rigor da seca do ano passado, ele conserva um razoável banco de sementes. Uma paixão que ilumina os olhos de Seu Zé Feliciano como o orgulho de ter um pedaço de terra que ele diz ser seu. Isso é possível, embora ainda seja um sonho para milhares de brasileiros.
Os textos dos colunistas e blogueiros não refletem, necessariamente, a opinião do Sistema Diário de Comunicação.
Leia mais notícias no www.diariodosertao.com.br/colunistas, siga nas redes sociais: Facebook, Twitter, Instagram e veja nossos vídeos no Play Diário. Envie informações à Redação pelo WhatsApp (83) 99157-2802.
Deixe seu comentário