Zé Melé foi tocar no céu
Por José Cícero
Faleceu no último dia 15 de março em São Paulo onde estava para tratamento de saúde e em visita a familiares, uma das nossas figuras populares mais queridas e emblemáticas. Trata-se do inesquecível, alegre e espirituoso ZÉ MELÉ.
Zé Melé foi talvez um dos nossos últimos espécimes – daqueles que no passado no nosso interior dava-se a denominação de “gente do povo”. Era reconhecido onde quer que passasse até mesmo em algumas das nossas cidades circunvizinhas. Com uma barba sempre farta e mal tratada, esbranquiçada, um caminhar lento e compassado talvez pelo tamanho da sua estatura; o nosso Zé também carregava a tiracolo quase como uma extensão do seu corpo, um rádio de pilha. Além do seu inseparável cavaquinho. Não era um tocador exímio do instrumento como se podia imaginar, mas aprendeu a dá alguns acordes, o suficiente para improvisar as canções que mais gostava; de preferência as da velha guarda, do brega e do Pinduca.
Dono de uma voz não muito apropriada para o canto, mesmo assim Zé Melé tinha uma verdadeira paixão pela música. De tal maneira que se achava um bom cantor e o fazia quase sempre nas suas bebedeiras com os amigos. Quando não estava com seu radinho de pilha ligado, como se fosse um carro-de-som pelas esquinas; era também possível encontrá-lo quase sempre dedilhando o seu velho cavaquinho. Cantando com seus agudos uma gama de canções melodiosas sempre a pedido dos transeuntes. Por onde quer que chegasse fazia a alegria dos presentes. Por onde passava deixava um rastro de animação… era por assim dizer, um verdadeiro mascate da alegria ambulante. Além de um boêmio, também era dado ao trabalho. Sua boemia estava sempre reservada aos finais de semanas, feriados e às festas municipais.
Seu ofício, mesmo em sua idade avançada era quebrar pedra à marteladas para a feitura da matéria-prima do concreto para construção. Uma tarefa árdua e penosa, principalmente para um senhor daquela idade. Entretanto gostava do que fazia e o praticava com prazer e esmero. Na semana era possível vê-lo com sua marreta e uma borracha de pneu, os principais instrumentos do seu trabalho. Seja com o sol a pino ou mesmo nas invermadas sempre o víamos na sua ‘oficina’ – uma modesta barraquinha de palha nas pedreiras do Poço do Meio às margens do Salgado. Depois, decerto pelo peso da idade, instalou sua latada às margens da linha férrea, tanto no Alto da Cruz quanto nas proximidades do antigo matadouro já nas imediações do Araçá. A vida do velho Zé foi sempre de pedra, como de pedra e granito foi sempre sua lida, sua faina de viver as coisas do mundo sem muitas preocupações ou estresse. Quebrando pedra e tocando seu "cavaco" Zé Melé provou-nos que, por mais dura que sejam as dificuldades haverá sempre uma maneira de afastar todas as pedras do caminho.
O vi por diversas vezes carregando sua lata de querosene ao ombro cheia de pedras, as sobras do calçamento da Cícero José do Nascimento. Pedras que seriam uma a uma fragmentadas sob as pancadas vagarosas e certeiras do Zé Melé. Era de fato um ofício para gente forte e corajosa.Seu principal combustível – uma cachacinha que mantinha pronta sempre ao alcance da mão. Foi um apreciador inveterado da branquinha. Aos domingos gostava de acompanhar o futebol local no ‘Romãozão’. Ocasiões em que o rádio e o cavaquinho tinham um lugar garantido. Peregrinava pelos bares tocando seu cavaquinho e cantando suas canções favoritas… no final instigava o freguês sempre a lhe pagar uma cachaça. Também gostava de bebiricar pela feira-livre de Aurora.
Ainda em 1988 lembro do Zé participando do Festival da Canção na ABA, incentivado que foi pela platéia entusiasmada chamando seu nome num frenesi… mais pela gozação do que pela música que ele cantava – a Volta do boêmio de Nelson Gonçalves, com transmissão ao vivo da rádio Vale do Salgado AM. No final, para a surpresa e a alegria de todos, Zé Melé abiscoitara o segundo lugar. Foi literalmente ovacionado pelos presentes. Uma conquista consagradora. Recordo da felicidade do Zé ao receber sua medalha, o troféu e a premiação. A entrevista aos radialistas: Barbosa Filho e Furtado Guedes. Saiu da ABA como se fosse um ídolo popular. Durante anos carregou sua medalha ao peito até perdê-la(não se sabe onde), disse-me certa feita ele, um tanto quanto desolado.
Outra vez, quando participávamos com a seleção de Aurora da Copa Difusora em Cajazeiras-PB o Zé com aquele seu jeitão moroso nós pediu permissão para também ir conosco. O que foi prontamente atendido. Foi a animação do nosso ônibus. Cantou e tocou seu cavaquinho a viagem inteira, tanto de ida quanto de volta. Mais de ida, porque na volta estava mais pra lá do que pra cá. Havia bebido além da conta. Zé Melé foi a atração da concentração, às ruas de Cajazeiras até nas arquibancadas do estádio O Perpetão. Ficamos em segundo lugar na competição, mas Zé Melé não se importou muito com o resultado… Comemorou com seu cavaquinho como quem comemorava a conquista de uma copa do mundo. Aquela cena foi-me algo inesquecível.
Vi a tristeza que se apoderou do nosso Zé quando roubaram o seu cavaquinho. Nos últimos tempos, mesmo depois de conseguir se aposentar, Zé Melé não era mais o mesmo. Faltava-lhe algo. Talvez a antiga alegria e o entusiasmo que o seu parceiro-cavaquinho tanto lhe proporcionava. Não sei quem fez tamanha maldade em surrupiar-lhe aquele instrumento quase sagrado. De uns tempos para cá não havia mais lhe visto como antes, amiúde. Agora de súbito fomos informados que o nosso Zé partira para o andar de cima. Foi-se sem ao menos se despedir dos aurorenses, vez que falecera(dizem de uma cirurgia) na distante São Paulo onde possuía alguns parentes.
Mas digamos ao menos que o Zé Melé não morreu… Apenas foi atender um chamado de São Pedro para tocar seu cavaquinho lá no céu ao lado de Deus.
"De onde é que esse coco vem/Todo coco tem azeite/Mas esse não tem (Bis)/O braço do mar não tem cotovelo/O caranguejo anda/Mas não é pra frente/Revolver tem cano mas não é torneira/Cachaça não dá rasteira/Mas derruba gente/O prego tem cabeça mas não tem juízo/O cabo da vassoura/Não prende ninguém/A mão de pilão nunca bateu palmas/Agulha costura e só anda nua/Na estradaque vai pra lua/Não se vê poeira/O trobonista toca com a boca fechada/O sino toca com a boca aberta/Quem roubar ladrão eu jamais acuso/Mulher não é parafuso/Mas agente aperta." Esta música do Pinduca, intitulada Coco Sem Azeite, era uma das favoritas cantaroladas por Zé Melé pelos bares e esquinas da Aurora. Que Deus o tenha e coloque em um bom lugar.
Zé Melé – * 15/08/38 – +15/03/2009.
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