Um solitário caju ao vento
Por Francisco Cartaxo – Costumo fazer a caminhada do domingo na companhia de Denilson, meu filho mais velho. Ele escolhe o roteiro, usa o smartphone para controlar nossos passos. No último final de semana, fomos ao Poço da Panela, tradicional recanto do Recife dos tempos coloniais, com seus casarões ao lado de coloridas casinhas conjugadas, pavimento de largas pedras toscas, conservados ao longo de séculos. E muitas árvores. Ainda em época da floração, vimos um solitário caju, já amarelado, balançando ao vento. Paramos um pouco. Nessa hora, ouço o canto distante de uma rolinha caldo-de-feijão.
Você escuta, filho?
Só a muito custo ele conseguiu ouvir. Ele que não tem a audição fragilizada pelo desgaste natural da idade. Eu ouvira logo. E me transportei à infância em Cajazeiras, quando era comum a gente escutar aquele sonoro pedido de atenção da ave, que pastorava sua parceira no ninho, ali bem perto, aconchegando ovos prestes a lhes dar filhotes. Coisa tão prosaica despertou em mim um turbilhão de imagens, sons, e de saudade que encheram minha alma. Meu filho, nascido e crescido em cidades grandes, não tem ouvido para esse canto nostálgico. Da mesma forma que minhas ouças não selecionariam na Amazônia, por exemplo, a diversidade de ruídos da mata, o falar de aves e bichos, muito embora carregue nas veias sangue indígena de ancestral remota, bisavô de minha mãe.
Por que falo coisas tão banais?
Para mostrar que o olhar de cronista é diferente. É livre na seleção de fatos, focos, abordagem ao dar asas próprias à construção literária. Poderia até ir mais longe e fazer da crônica um conto. Ora, a fronteira entre esses dois gêneros literários, conto e crônica, é tão tênue que, às vezes, é difícil separá-los. Nem o leitor precisa saber dessas filigranas narrativas. Quem escreve, no entanto, deve dirigir com liberdade seu olhar muito além do umbigo. Eu sei, leitora, nem todos fazem isso.
Há quem se perde no próprio umbigo.
E, frente à amplitude do cenário, fica na miudeza. Menospreza a largueza do mundo ao seu redor. Borra-se na pequenez das coisas, o umbigo com dimensão de universo. E daí? Cega. Mata a sensibilidade, torna-se incapaz de sentir a beleza existente num solitário caju a balançar ao vento, associado ao canto da rolinha caldo-de-feijão, matéria prima para o cronista dividir sua emoção com o leitor. Se o cronista se limita a olhar o próprio umbigo, secaria com seus olhos o vigor da fruta, não gozaria o nostálgico canto da rolinha.
Presidente da Academia Cajazeirense de Artes e Letras
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