Para que subir no palanque?
Por Francisco Frassales Cartaxo – Deitados na larga rede de casal, as revelações fluem na manhã do domingo, a rua sem ruído capaz de incomodar a troca de confidências entre os dois, ele expansivo como nunca. Aqui e acolá, um pássaro povoa o silêncio da rua, um alisar dos cabelos, o tocar de lábios na ponta dos dedos. Um pé de unhas bem cuidadas, com esmalte incolor de suave brilho, embala a rede na mansidão da vida.
Às vezes, o pé muda o ritmo a exibir a reação da alma.
Leituras relembradas, textos remoídos, ruminação de encontros agora revividos, banais notícias políticas, lembranças de comícios em palanques armados em cima do caminhão. Esses assuntos que nos entretém não valem um naco do coração aberto em pétalas voadas com suavidade de dentro do abafado peito. O pé de unhas esmaltadas balança a rede de mansinho. Você sabe, eu vivi momentos de muito amor no passado, gente que se cruza no caminho faz os olhos enxergarem muito além do rosto, do cabelo ora solto ao vento, ora molhado na água da bica em dia de chuva, o gozo das carícias úmidas. Foram paixões arrasadoras, você sabe, a ardência do corpo envolvia noites e madrugadas, o amanhecer pleno de desejos satisfeitos.
Um pé de unhas bem cuidadas balança a rede com força.
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Experiências do passado, você sabe, incrustradas na alma, nunca lhe neguei a verdade, mesmo narrada a conta-gotas, com enfeites da imaginação… vivenciar um dia de índio, guardando-se o tesão à sombra de mangueiras repletas de frutos verdes e maduros, a manga espada dominando o ambiente dos trópicos no estímulo de olhares e toques cúmplices… você até pode fantasiar, num sítio em jeito de paraíso, tudo muito contido para a explosão noturna do sexo.
O pé de unhas esmaltadas quase faz voar a rede.
Mas isso é coisa de épocas passadas, tempos de descontroladas paixões. A exuberância da natureza acumpliciava as reservas de amor incontido. A pausa silenciosa é quebrada pelo lânguido canto da rolinha caldo-de-feijão. Você sabe, agora vivemos nova realidade. A delicadeza do entrelaçar de dedos, o cabelo longo a encobrir o rosto, a certeza das verdades ouvidas, a calma dos gestos. Tudo isso é o nosso hoje.
O pé de unhas bem cuidadas encosta no sofá de mansinho. Quase o alisa. O balanço de parada da rede feito os trens de antigamente quando, ao som de apito estridente, ia chegando, chegando, chegando na estação. Na multidão um gesto se sobressai. O gesto de mão de Cajazeiras foi um convite mudo.
Por que você ainda me chama para subir no palanque?
Sócio da Academia Cajazeirense de Artes e Letras
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