Para além do natural
De repente, pelas ruas da cidade, as cenas se repetem com uma assiduidade muito além do tolerável por qualquer limite de racionalidade e de urbanidade. Trechos de ruas e avenidas são interditados por alguns dias para a promoção de festas particulares. E isto vem tornando-se fato corriqueiro para a celebração de aniversários e outras efemérides de particulares. Pela recorrência estas cenas acabam assumindo a feição de normalidade, não mais desencadeando a necessária indignação que se faz necessária para o desenvolvimento equilibrado das relações sociais. Outros cenários também se repetem corriqueiramente. Calçadas e, até mesmo, pedaços de ruas são ocupados por mesas e cadeiras de bar ou por entulhos e material de construção. A inversão dos valores é encarada com a tranqüilidade que se apropria do público e o transforma em coisa de interesse pessoal ou particular.
Essas situações, aparentemente normais, revelam uma prática que, historicamente, foi e continua sendo característica da realidade brasileira: a inversão de valores e, principalmente, a apropriação do público pelo privado. Desse modo, a omissão e, em muitos momentos, a anuência do poder público também se situa neste cenário como complemento e, até mesmo, como incentivador destas práticas. São apadrinhados, afilhados políticos, correligionários, cujos interesses pessoais devem ser considerados, até mesmo quando se contrapõem ou lesionam interesses coletivos. Interditar uma avenida por alguns dias apenas para a celebração do aniversário de alguém soa como uma obrigação do poder público para com alguém que reza pela cartilha do mandatário ou que, em oportunos momentos eleitorais, lhe carreia significativas somas de votos. Nesse universo, gratidão se paga com a generosidade da coisa pública que, enviesada pelo privado, se ausenta de espaços necessários como educação, saúde, segurança, e, até mesmo, da implantação de uma convivência urbana salutar, onde transitar pelas ruas da cidade seja um gesto tranqüilo, sem percalços ou desvios e assegurado pelos necessários mecanismos e equipamentos oferecidos pelo poder público.
Essa situação de inversão e de apropriação do público pelo privado se naturaliza, por exemplo, em pequenos e grandes gestos e comportamentos cotidianamente repetidos e que, pela recorrência e impunidade, tornam-se naturais e socialmente aceitáveis. Levar uma resma de papel ofício da repartição pública para casa não representa nenhum grave pecado administrativo porque, afinal, o almoxarifado está entulhado e uma simples resma não faz diferença nenhuma. Argumento que serve como base de justificativa para tantas e enormes falcatruas e roubalheiras que, frequentemente, emergem do cenário da vida pública.
Não existe, portanto, diferença entre a resma de papel, os milhões desviados de obras públicas, as licitações viciadas, a interdição de ruas e avenidas para a promoção de festas particulares, as mesas de bares ocupando calçadas e trechos de ruas. Todos são gestos que referenciam um comportamento político majoritariamente praticado e aceito como natural. O que talvez não se naturalize seja a indignação de alguns diante destes cenários. Indignação que chocalha e altera comportamentos e, dessa forma, transforma, mesmo que sutilmente, mentalidades e formas de ver o mundo.
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