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José Anchieta

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Ainda há homens no mundo

09/06/2011 às 13h09

Quando a desesperança vai instalando, pequenas luzes surgem e mostram à humanidade que ainda há espaço para crer num homem melhor que construirá um mundo melhor. No artigo desta semana, faço questão de transcrever literalmente a decisão de um Desembargador do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, quanto a um recurso (Agravo de Instrumento nº 1001412-0/0, 36ª Câmara Cível), ajuizado contra um Juiz da cidade de Marília, que negou os benefícios da justiça gratuita a um menor, filho de um marceneiro que morreu depois de ser atropelado por uma moto.

Na ação, o menor requer indenização por danos morais, decorrentes do falecimento do seu pai. Por ser “pobre na forma da lei”, requereu que a justiça lhe concedesse a gratuidade (como prevista na Lei 1.060/50). O Juiz negou o pedido, alegando que, por estar sendo representado em “advogado particular”, teria condições, sim, de assumir o ônus do processo. O advogado do menor recorreu ao tribunal, opondo o recurso cabível, acima indicado. E. abaixo, o voto do Desembargador Palma Bisson, que merece aplausos e seguimento (onde o positivismo jurídico prospera, impera a injustiça).

"É o relatório. Que sorte a sua, menino, depois do azar de perder o pai e ter sido vitimado por um filho de coração duro – ou sem ele -, com o indeferimento da gratuidade que você perseguia. Um dedo de sorte apenas, é verdade, mas de sorte rara, que a loteria do distribuidor, perversa por natureza, não costuma proporcionar. Fez caber a mim, com efeito, filho de marceneiro como você, a missão de reavaliar a sua fortuna.

Aquela para mim maior, aliás, pelo meu pai – por Deus ainda vivente e trabalhador – legada, olha-me agora. É uma plaina manual feita por ele em paubrasil, e que, aparentemente enfeitando o meu gabinete de trabalho, a rigor diuturnamente avisa quem sou, de onde vim e com que cuidado extremo, cuidado de artesão marceneiro, devo tratar as pessoas que me vêm a julgamento disfarçados de autos processuais, tantos são os que nestes vêem apenas papel repetido.

É uma plaina que faz lembrar, sobretudo, meus caros dias de menino, em que trabalhei com meu pai e tantos outros marceneiros como ele, derretendo cola coqueiro – que nem existe mais – num velho fogão a gravetos que nunca faltavam na oficina de marcenaria em que cresci; fogão cheiroso da queima da madeira e do pão com manteiga, ali tostado no paralelo da faina menina.

Desde esses dias, que você menino desafortunadamente não terá, eu hauri a certeza de que os marceneiros não são ricos não, de dinheiro ao menos. São os marceneiros nesta Terra até hoje, menino saiba, como aquele José, pai do menino Deus, que até o julgador singular deveria saber quem é.

O seu pai, menino, desses marceneiros era. Foi atropelado na volta a pé do trabalho, o que, nesses dias em que qualquer um é motorizado, já é sinal de pobreza bastante. E se tornava para descansar em casa posta no Conjunto Habitacional Monte Castelo, no castelo somente em nome habitava, sinal de pobreza exuberante.

Claro como a luz, igualmente, é o fato de que você, menino, no pedir pensão de apenas um salário mínimo, pede não mais que para comer. Logo, para quem quer e consegue ver nas aplainadas entrelinhas da sua vida, o que você nela tem de sobra, menino, é a fome não saciada dos pobres.

Por conseguinte um deles é, e não deixa de sê-lo, saiba mais uma vez, nem por estar contando com defensor particular. O ser filho de marceneiro me ensinou inclusive a não ver nesse detalhe um sinal de riqueza do cliente; antes e ao revés a nele divisar um gesto de pureza do causídico. Tantas, deveras, foram as causas pobres que patrocinei quando advogava, em troca quase sempre de nada, ou, em certa feita, como me lembro com a boca cheia dágua, de um prato de alvas balas de coco, verba honorária em riqueza jamais superada pelo lúdico e inesquecível prazer que me proporcionou.

Ademais, onde está escrito que pobre que se preza deve procurar somente os advogados dos pobres para defendê-lo? Quiçá no livro grosso dos preconceitos…

Enfim, menino, tudo isso é para dizer que você merece sim a gratuidade, em razão da pobreza que, no seu caso, grita a plenos pulmões para quem quer e consegue ouvir.

Fica este seu agravo de instrumento então provido; mantida fica, agora com ares de definitiva, a antecipação da tutela recursal. É como marceneiro que voto."

(Des. JOSÉ LUIZ PALMA BISSON — Relator Sorteado)


Os textos dos colunistas e blogueiros não refletem, necessariamente, a opinião do Sistema Diário de Comunicação.

José Anchieta

José Anchieta

Redator do Jornal Gazeta do Alto Piranhas, Radialista, Professor formado em Letras pela UFPB.

Contato: [email protected]

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José Anchieta

Redator do Jornal Gazeta do Alto Piranhas, Radialista, Professor formado em Letras pela UFPB.

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