A cara humana do herói
O jeito elegante e esguio de se portar no campo assemelhava-se a uma figura nobre saída de um quadro renascentista. O porte alto, esbelto e ágil esgueirava-se por todo o gramado com a destreza dos grandes gênios da bola. A sutileza dos dribles desconcertantes deixava os adversários estonteados. Os toques de calcanhar quebravam a rotina do jogo e introduzia o elemento surpresa em jogadas que, via de regra, culminavam com o gol e o delírio da torcida que, em êxtase, berrava a pleno pulmões o nome do Doutor.
Essas são doces lembranças que trago do jogador Sócrates cujo futebol inspirado em requintes de arte, no início de minha fase adulta, me fez enamorar o futebol como um espetáculo dotado de plasticidade, engenhosidade e talento. O desencanto com a frustração da campanha do Escrete Amarelinho na Copa da Espanha, em 1982, não desbotou a genialidade de Sócrates que, ao lado de talentos como Zico, Júnior e tantos outros, nos encantavam em partidas recheadas de gols, lances geniais e alegrias inenarráveis.
Nos toques desconcertantes do calcanhar do Doutor Sócrates sonhávamos com um país que desejava liberdade e voto livre. Nas tardes de domingo, nas telas de televisão, muitas ainda em preto e branco, nos gritos de gol e nas jogadas inteligentes, nos vestíamos de heróis e construíamos o desejo de eleger o presidente, de escrever uma constituição democrática, de abolir a censura e as interdições, de escolhermos o partido político de nossa preferência, de marcharmos nas ruas sem o temor das armas e da truculência. Entre gols e socos vibrantes no ar o país se tornava um grande palco para o espetáculo da bola e do sonho.
Mas, como diz o poeta Cazuza, “meus heróis morreram de overdose”. E, entristecidos, assistimos a agonia do Doutor Sócrates que, enveredando pelo caminho do alcoolismo, enfrenta graves problemas de saúde. O gênio da bola sucumbiu ante o fulgor da fama e do estrelismo. Não encontrou o suporte emocional para conviver com a glória e emergiu na solidão e no individualismo. Sua esposa reconheceu publicamente que o maior problema do grande craque foi a solidão que o acometeu, sobretudo quando o burburinho dos gramados, os aplausos das torcidas, o assédio da imprensa e dos fãs transformaram-se em idas lembranças. Quando o silêncio da aposentadoria dos gramados transforma em torturante melancolia o que antes era festa e alegria o herói sucumbe e procura lenitivo em alternativas nem sempre saudáveis.
E ficamos mais tristes e mais vazios quando constatamos que nossos heróis envelhecem, sofrem, se fragilizam e vergam ante as intempéries da vida. E também nos conscientizamos de nossa fragilidade. Afinal, somos todos humanos, mesmo que travestidos de gênio ou herói.
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