Sonhos e vadiagens
No som do carro uma música de Renato Teixeira fala de sua emoção, quando criança, de uma viagem que fez com o pai para o Rio de Janeiro e, de forma poética, revela a vadiagem da imaginação que, nos dias que antecederam a viagem, idealizou cenários e sonhos de possibilidades.
Os versos da música me transportam para minha infância quando, em raros momentos de sonhos e fantasias, vinha para cidade com papai ou mamãe, em dia de feira livre. A noite que antecipava a madrugada da viagem era praticamente indormida, ante o receio de que o sono pesado fosse razão para a desistência materna ou paterna. Ainda com o escuro da madrugada já estava em pé na espreita para seguir a caminhada até a boca do corredor onde, ainda na penumbra do dia que, preguiçosamente amanhecia, pegávamos o caminhão de três boléias de Joaquim Pajeú, que gemia indolente na estrada de terra pontilhada por buracos e solavancos.
Na cidade, com suas casas geminadas e calçamentos de paralelepípedos, me extasiava com o burburinho da feira livre. Deleitava-me com o balaio de bonecas de pano, delicadamente confeccionadas pelas mãos habilidosas da artesã. Sonhava com aquelas criaturas lúdicas em nossas casas de bonecas no quartinho do alpendre da cozinha de nossa casa de Impueiras.
Ao longe, os acordes de violas anunciavam os desafios de repentistas que, no improviso da genialidade, trançavam mundos de heróis e mocinhas, de cangaceiros e beatos, de valentões e sabidos. Infantis mãos assustadas não desgrudavam da proteção paterna, enquanto olhos ligeiros e buliçosos absorviam a paisagem urbana, com suas paredes caiadas, a iluminação elétrica, os sons chiados de rádios, o barulho de veículos que, ainda parcos, já ensurdeciam os ouvidos acostumados ao chiado de grilos e sapos, ao cantar de cotovias e rolinhas, ao estardalhaço de trovões de estalo que antecipavam as enxurradas do inverno.
As visitas a casa dos tios que moravam na cidade, com a magia da água gelada, o barulho do liquidificador que triturava bananas e jenipapos em gostosas vitaminas servidas com fartos pedaços de pão da rua. Dos pisos ladrilhados de mosaicos coloridos, dos banheiros com vaso sanitário bem distante da liberdade das moitas de mufumbo improvisadas em espaços para o atendimento de necessidades humanas elementares.
Dos chuveiros que faziam a água cair em forma de chuva sem a necessidade de buscar o líquido das cacimbas que, no final da temporada de estiagem, minguavam lentamente em pequenos veios morosamente conduzidos em cuias para latas de querosene que abasteciam os potes de beber e de cozinhar.
No meio da tarde a buzina do caminhão avisava que era o momento de voltar. Nos sacos de pano com as iniciais de papai marcadas em ponto de cruz, misturavam-se pães da rua, sabão, alguma sandália para um dos meninos, café, açúcar e alguns outros poucos víveres que as apertadas economias possibilitavam.
Mas, não tinha preço a vadiagem de um dia na feira. Mesmo sendo momentos esporádicos.
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