Saudades que ensinam
O tempo, senhor de todas as vontades, transforma a dor em saudades.
E assim, a mágica capacidade de viver vai nos adequando a novas realidades sem as vozes, os gestos, as presenças, os cheiros, os afagos.
Hoje, papai, tua ausência já soma quatorze anos. Mas, em Impueiras, o som de teu assobio, nos finais de tarde, soprando acordes gonzageanos, ainda ecoa em paredes e sombras que guardam teu chapéu de palha, teu bornal, tua camisa de mesquita com os remendos que, desajeitados, mamãe improvisava nos rasgões provocados por arames e espinhos.
Ainda ressoam os sons de benditos cantados nas ladainhas e novenários do mês de maio, celebrados como o fervor de quem sempre teve na fé um dos pilares da existência e a mais autêntica forma de viver com dignidade e altivez.
Uma dignidade que nos foi ensinada no respeito ao outro, na convivência com a diversidade, na habitação com a simplicidade da vida que, escassa em recursos e bens materiais, se fazia abundante em afetos e gentilezas. Afetos e gentilezas traduzidos no respeito à natureza e no trato com os animais, da vaca Castanhola aos teus gatos e cães, com quem conversava construindo prosas e amizades verdadeiras.
E o tempo, cronológico em quatorze anos, se faz imenso na certeza de que tua vida não passou despercebida. Não traz em tua biografia os feitos dos heróis. Mas, em cada página que a brisa mansa dos dias manuseia, vemos histórias e narrativas que se avolumam e assombram pela dimensão de humanidade que traduz teu existir. E, assim, nós, teus filhos, seguimos transformando tua saudade em força para seguir pelos caminhos que, ontem, tuas mãos calejadas da lida na roça, nos conduziram.
Hoje, mamãe, tua ausência marca em nossos calendários de saudade sete anos sem teus cuidados com os “meninos” que, crescidos, ganharam o mundo, mas permanecerem, em afetos e carinhos, presos as tuas protetoras asas.
Em Impueiras, a cadeira de balanço ainda oscila nas tardes mornas e solitários do alpendre como a esperar teu retorno e tuas prosas com Xãe, Zé Venga, ou tuas conversas, sinceras, com o cachorro Luck, com o gato Sivuca.
Mamãe, ainda hoje, mesmo sem a regularidade diária, o fogão de lenha de tua cozinha ainda prepara o gostoso feijão temperado com nata e coentro, cultivado em tua horta aguada com o sofrimento das latas de água carregadas na cabeça, da cacimba do baixo. O açude ainda enche nas invernadas e do quaradouro um vento leve do meio da manhã sopra o cheiro da roupa diligentemente lavada e, à tarde, passada a ferro de brasa soprado por nossas bocas infantis.
Mamãe, estes setes anos não apagaram o teu olhar triste e embaçado das lagrimas choradas no pilar do alpendre quando, nas madrugadas, te despedia dos teus meninos que te visitavam no Carnaval, na Semana Santa, nas fogueiras.
E assim, Raimundo Moura e Betina, seguimos construindo nossas histórias. Mas, sem esquecer, um só instante, que o desenho de nossas vidas tem o traço inicial de suas vidas, seus modelos e seus rascunhos de decência, afeto e gentileza.
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