Saque, medo, vergonha e punição
Menina-moça, ela chegou com os pais mais menina do que moça, sem despertar atenção. A curiosidade de todos voltava-se para o novo juiz da comarca, numa época em que só havia um juizado na cidade. Com pouco tempo, no entanto, metida na farda escolar, ela começou a atrair olhares aqui e ali. Olhares cada vez mais insistentes. E não era apenas como deferência à autoridade do pai, já então tido e havido como homem sério, competente, justo. A menina ia ficando para trás. Os olhares agora corriam na direção da moça, desprezando-se à reverência ao doutor juiz. Olhares focados no corpo de mulher, ainda imerso na farda colegial. Mais que o corpo, no jeito. O ar de liberdade nos longos cabelos soltos, a esconder a inteligência que despontava em conversas com professores, colegas de sala, com os amigos do pai, a revelar-se leitora precoce de obras literárias. E mais, em noite de festa no colégio, sua voz firme dominou a plateia. Os aplausos, tímidos de início, foram num crescendo até às palmas continuadas e aos gritos e vivas e berros. Ela atendeu ao bis, bis, bis!
O juiz perdeu o status, virou o pai da menina…
Paixões se insinuam de todos os lados. O colega de sala já não se contém ao vê-la ali pertinho, todos os dias, ele petrificado, as palavras ensaiadas no banheiro presas no medo do insucesso da primeira abordagem. A paixão ondulava no olhar. A menina enfeitiçara, também, o professor. Os dois, aos risos, já não eram só cochichos pelos corredores do colégio. Iam mais longe, na rua, em bares e festas. Ele a espreitar-lhe os passos. A maledicência humana solta diante daquela relação inusitada. A filha do juiz, àquela altura, já penetrara na alma da cidade. E a cidade deixava-se envolver por quem chegara de mansinho e já parecia furação.
– Conversa do povo, nunca fui furacão coisa nenhuma, diria ela, muitos anos depois, instigada pelo neto que apontava na foto amarelada a porta-bandeira no desfile de 7 de setembro: É tu mesmo vó?
Até que um dia correu a notícia: o juiz foi transferido. Tristeza. Sonhos desfeitos. Ilusões de volta ao leito. Na homenagem de despedida, lá estava ela, envolta no mistério da paixão não revelada. Até aí, a lenda tinha a fraqueza dos desejos contidos, das declarações de amor expressas no olhar. Apenas no olhar. Aliás, insistentes olhares de mil gatos. A alma da cidade exposta em pupilas dilatadas. Tudo isso, no entanto, se foi apagando com o tempo, a lenda esvaindo-se, ela morando em lugares distantes, sempre na companhia dos pais.
A lenda, porém, recrudesce forte e viva quando o corpo do professor perde a alma. Morte morrida. Lenta, a doença a lhe consumir pouco a pouco, na angústia de vê-la apenas em sonho. E no retrato. Retrato da menina-moça preso em suas mãos frágeis, trêmulas de saudade. Todos os dias, por longos meses.
– Coitado, morreu agarrado ao retrato da filha do juiz.
E ela sabia. Tanto que no dia em que o professor emite o último suspiro, o retrato amassado nas mãos mortas, ela, a 500 km de distância, não consegue pregar os olhos a noite toda e o dia todo. A filha do juiz! A mesma que enfeitiçara uma cidade.
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