O preso
Ele passava todos os dias em frente à casa de meu. Religiosamente. Duas vezes por dia, no começo da manhã e à tardinha. Para mim era um mistério. Vez por outra, dava um “bom dia”, um “boa tarde”, quando coincidia estar meu pai na calçada da Vila Isabel. Certa manhã, em lugar de seguir para o Alto do Cabelão, ele se chega ao portão.
– Bom dia, seu menino, doutor Cartaxo taí?
Nem tive tempo de responder. A voz de meu pai veio da varanda, pode entrar, já estava esperando você. E ali mesmo, em pé, os dois acertam um serviço que começa de imediato. Sem demora, lá está ele subindo no coqueiro com impressionante agilidade, arranca as folhas secas e velhas, os restos de cachos de coco e toda aquela sujeira acumulada nas palhas altas da árvore. A tudo eu presto atenção, os olhos, os ouvidos, todos os sentidos postos em alerta. Antes de descer ele despeja no olho do coqueiro um punhado de sal grosso. Desce feito um gato, limpa o chão em redor do tronco da palmeira e espalha com a mão outro punhado de sal.
– É pra dar força ao coqueiro, pra vingar…
Ele disse diante da pergunta que lhe fizera, espantado com essa história de salgar a árvore… Foi minha primeira lição rudimentar de agricultura, dada por um homem simples, entendido no assunto. Aliás, um sabichão a meus olhos de criança. Homem simples, porém, de vida complicada. Naquele dia, já se vão mais de 60 anos, meu irmão Tantino, quase rapaz, desvendou o mistério, que meu pai apenas insinuara, cheio de circunlóquio, com seus escrúpulos de professor, católico, reservado, comedido ao revelar aos filhos os mistérios da vida, do amor e da morte.
Aquele homem simplório que, diariamente, passava duas vezes em frente a minha casa, pela manhã e à tarde, era um assassino. Assassino transitado em julgado. Matara a própria mulher sem dó nem piedade, desmanchando em sangue o ódio que lhe enchia o coração vingativo. Um crime hediondo. A ação delituosa ocorrera em Boqueirão.
Indiciado, processado, julgado em sessão do júri popular, foi condenado à pena máxima, cumprida na cadeia e, depois, em regime semiaberto. Dormia na cadeia. Nos conformes da lei.
Assim, entre um crime bárbaro e a visão do homem manso, trabalhador, mestre na arte de cuidar dos coqueiros de Cristiano Cartaxo, assim, tive a primeira lição prática de direito penal. Matéria que, anos mais tarde, tanto me encantou ao ouvir as preleções do senador Olavo Oliveira, meu professor na antiga Faculdade de Direito do Ceará. Essas imagens da infância afloraram naturalmente quando vi José Dirceu chegar à cadeia. Ele e outros mensaleiros e mensaleiras. Um escândalo num Brasil desacostumado a ver tanto gente importante presa. Gente branca, rica, poderosa.
Parece pesadelo. Ou parece sonho, a depender de como milhões de brasileiros irão julgar, sobretudo, os companheiros e companheiras condenados pelo STF, em sentença transitada em julgado. Igual ao homem simples que matou a própria esposa.
Aquele homem, eficiente no trato de coqueiros, assassino da mãe dos próprios filhos, praticara um crime hediondo. Como hedionda é, hoje legalmente, a prática da corrupção que levou à cadeia banqueiros, deputados, marqueteiros, dirigentes e tesoureiros de partidos. E “heróis petistas”. Num caso e noutro, alguns réus cumprem penas, em regime semiaberto. Daí ter eu recordado cenas tão antigas, aquele homem que passava todos os dias rumo à cadeia. Mundo cruel. Uns matam o ser amado. Outros, a esperança. Um sobe no coqueiro. Outro vira gerente de hotel.
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