O livro de sonetos
Ela andava sumida. Passado um tempão deu o ar da graça. Amiga do tempo da máquina de datilografia, hoje peça de museu, ela prefere comunicar-se por telefone. Me sinto mais à vontade, disse, tenho medo dessas novidades conectivas… sei lá, de repente a gente clica um trem desses, erra o alvo e lá de vão não sei pra onde as palavras que a gente escreve sem muito jeito para lidar com a vida em rede. Semana passada me cobrou.
– Cadê o livro de soneto? Estou esperando você comentar.
Num segundo de mutismo, achei que havia engano. Engano normal na idade da gente, neurônios e outras peças do corpo e da alma desgastadas pelo tempo de uso. Fiz esforço para ativar a memória, Deus meu, que livro é esse que ela me cobra eu nunca escrevi um verso quanto mais um soneto e pior ainda um livro de sonetos… Não. Não, seguramente, minha amiga está maluca. Talvez quisesse ligar para outra pessoa e, sem querer, discou meu número. Todavia, aquele “estou esperando” é uma cobrança. Claro. A cobrança de uma promessa. E eu não sou de prometer em vão. Se prometo uma coisa a alguém… Tudo isso eu pensei em fração de minuto, as ideias em atropelo, enquanto buscava na memória a ficha do tal “livro de sonetos”, cobrado assim sem mais nem menos. Não houve outro jeito, me rendi. Que livro, menina? O “menina” foi proposital. Nada mais elegante e simpático. Ah, esse tratamento! Como afasta reações negativas! Salvou-me. O “menina” me salvou! E ela, doce e meiga como nos velhos tempos, fala então com naturalidade.
– Ora que livro… o dos sonetos que seu pai escreveu pra sua mãe antes de se casarem, imagina, você não se lembra? Oxente, esqueceu, foi?
Agora, sim, as coisas clarearam. Explico essa conversa misteriosa. No final do ano passado, narrei em crônica a forte paixão de meu pai, Cristiano Cartaxo, por minha mãe, Isabel Sales, quando esta era uma menina de 16 anos e ele, um viúvo provecto de 34 anos. Isso quase cem anos atrás! Verdade. Eu informara então que o apaixonado Cristiano dedicava um soneto por dia e mandava às escondidas para sua bem amada, em jeito de seduzi-la. E ela guardava os versos, entre suspiros de amor, o coração aos pulos, o peito arfando, os sonhos a rondar-lhe a cabeça adolescente. Lia e relia para mitigar a saudade, na ânsia da chegada do novo poema. Sempre havia um próximo. Foram muitos. Muito mais de quarenta sonetos, reza a lenda familiar, repetida em horas de saraus nostálgicos na casa onde vivi minha infância, em Cajazeiras.
Foi num desses encontros em família que eu, menino ainda, fiquei sabendo do destino dado aos muitos poemas de amor dedicados à minha mãe, antes do casamento. O primeiro e único dela, o segundo de meu pai. Pois bem, foi nesse clima de lembranças do passado, que Nanza, uma das filhas mais velhas do casal, perguntou com sua voz cantante de cearense adotiva:
– Mamãe, cadê os sonetos que o papai escreveu pra senhora?
A resposta veio em cima da bucha. Sem substantivo, sem adjetivos, num verbo:
– Rasguei.
Pressenti então, na outra ponta do fio, sinais de tristeza em minha amiga. Melhor assim, disse a ela em tom de consolo, palavras e gestos de amor ficam bem entre os dois. Bem guardados. Ela ouviu. Nada falou. Suspirou. Apenas suspiramos.
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