O cardeal e a pomba
A cena da pomba branca que, por um tempo considerável, pousou sobre o esquife do cardeal Eugênio Sales, evocou em nosso imaginário sentimentos sobre o sentido das ações e convicções que, ao longo da vida, cultivamos como princípios de conduta. Um sentido que nos torna mais ou menos sensíveis ao sofrimento alheio e mais ou menos propensos a vivência da solidariedade.
O gesto de um membro da Cruz Vermelha que, rendendo uma derradeira homenagem ao religioso, solta uma pomba que, nas convenções mundiais, simboliza a paz, se traduz como uma forma de, na singeleza das nossas intenções mais despretensiosas, dizermos que os homens podem transformar o mundo sem engatilhar uma arma ou sem arrebanhar multidões aglutinadas em torno de profecias ou discursos tresloucados. Que nossas crenças e posicionamentos políticos, quando cultivados com tolerância e sem prepotência, se constituem em fértil espaço para a discussão de idéia e para a tessitura de estratégias que mudam realidades. Não importa em que espectro ideológico me situe desde que não configure minhas posições como únicas e absolutas e, nesse entendimento, me encastele numa redoma intransponível que não permite o diverso, o contraditório.
A vida pública do cardeal Eugênio Sales foi marcada por essa trilha da tolerância e de um arraigado sentimento de humanismo, ou seja, de aceitar o homem como expressão da liberdade e da convivência social. Mesmo não partilhando de convicções progressistas não se omitiu em, usando a imunidade que a posição religiosa lhe outorgava, abrigar e proteger perseguidos políticos, livrando-os da sanha absurda da repressão política encadeada pela ditadura militar.
A pomba branca sobre o caixão de Dom Eugênio Sales nos evoca a morte de Oscar Romero, arcebispo de El Salvador, que vinha assumindo uma postura bastante incisiva na defesa dos marginalizados de seu país, denunciando as atrocidades do governo autoritário que, sob as ordens dos Estados Unidos, transformava o país num quintal ianque. Dom Oscar foi assassinado quando celebrava uma missa, em 24 de março 1980, por um atirador de elite do exército salvadorenho, treinado nas forças policiais norte- americanas. Durante a missa de corpo presente uma pomba branca, inexplicavelmente e despropositadamente, penetrou a catedral da capital salvadorenha e pousou sobre o caixão do religioso emocionando a todos que, presentes ou atingidos pelas transmissões televisivas, viam na morte covarde do arcebispo uma forma de fortalece a luta de um povo que, secularmente, vinha sendo espoliado por uma elite arrogante e subserviente a interesses estrangeiros. A morte de Oscar Romero provocou uma onda de protestos em todo o mundo e pressões internacionais por reformas em El Salvador.
Em 2010, a Assembleia Geral das Nações Unidas proclamou o dia 24 de março como o Dia Internacional pelo Direito à Verdade acerca das Graves Violações dos Direitos Humanos e à Dignidade das Vítimas em reconhecimento à atuação de Dom Romero em defesa dos direitos humanos.
A pomba que pousou sobre o caixão do religioso brasileiro nos traz o sentimento de que, ao defender os perseguidos e marginalizados, Eugênio Sales também defendeu o homem em sua humanidade plena, independente de convicções religiosas, ideológicas, políticas. Exemplos que se somam as de Gandhi, Mandela, Teresa de Calcutá e milhares de outros seres humanos, notáveis ou anônimos, mas que fazem de suas práticas cotidianas possibilidades de viver a plenitude da existência.
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