O anjo da vida
A barba branca e desgrenhada. O porte magro e retilíneo. A pele trigueira e endurecida pelo sol e pela lida diária no sertão. No rosto vincos expressavam as marcas do tempo e as influências do meio agreste. Caminhando pelas ladeiras empoeiradas e lamacentas da minha infância sua imagem vinha sempre envolta numa aura de mistério e de inexplicável medo. Mistério e medo alimentados pela imaginação infantil que sempre o associava a morte e ao desconhecido.
A sua estampa traduzia a personificação de personagens de algum romance de Guimarães Rosa ou das páginas do realismo fantástico de Gabriel Garcia Marques.
O seu nome já remetia para esse limbo de fantasia e incógnita: Salustiano. Convenhamos, um nome pouco usual, mesmo em tempos idos.
Homem rude, mas de muita fé e conhecedor de orações, era sempre convocado para auxiliar os doentes em fase terminal. Chegava as casas quando o moribundo agonizava e, entre rituais e evocações, recitava rezas e orações. Sua presença era conforto espiritual e lenitivo para doentes e familiares. Tenho em minha memória vivas lembranças da infância quando, estudando na escola que funcionava na sala principal da antiga casa de Zé Raimundo, na entrada de Impueiras, ali morava a família de seu Zé Nicolau e Dona Maria Cândida.
Em nosso cotidiano escolar, dividíamos as aulas com o dia a dia da família, ouvindo farelos de conversa, sentindo o cheiro do toucinho torrado e do feijão com pão de milho feito no bafo da panela. Neste percurso, acompanhamos o perecimento de Seu Zé Nicolau e da forte presença de Salustiano ao lado do tosco leito do moribundo. Ainda ressoa, com muita nitidez, em minha memória, suas orações e trejeitos como a traçar um imaginário caminho a ser seguido pelo enfermo após sua passagem. Episódios que alimentaram minha imaginação de criança e que deram força a associação de Salustiano com a morte.
Certa vez, ele veio fazer uma farinhada na casa de farinha que papai mantinha em Impueiras, uma das poucas que restou de tempos remotos. Um dia, próximo ao horário de almoço, ele bate a nossa porta e troca uns dedos de prosa com meu pai. O que me despertou a atenção foi o fato dele conduzir alguns beijus e tapiocas na cabeça, sem nenhuma proteção. E, para meu desespero de criança ante a figura misteriosa de Salustiano, foi meu pai ter, prazerosamente, aceito o pedaço de beiju que ele ofereceu. Agarrei-me as pernas de papai como a tentar evitar um desfecho trágico, acreditando que aquele homem trazia uma forte relação com a dor e o sofrimento desencadeados pela morte.
Hoje, a lembrança de Salustiano me causa outras reações. Sua presença nos leitos de morte dava um sentido de humanidade a própria vida. A morte era encarada como um desfecho natural da existência e, desde cedo, entre medos e imaginações, espreitávamos a morte como os fiapos da branca barba de Salustiano. Enigmática, mas real.
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