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José Anchieta

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Letras e Sons da Vida

15/07/2008 às 10h06

Uma letra.

Apenas uma letrinha, apresentada a mim, há muito tempo pela minha tia, Maria, que também me deu o primeiro banho da vida. Talvez o segundo; acho que o primeiro foi na maternidade, para aliviar a “surra” que o médico me deu. Que cena! Dependurado pelos pés, apanhando no “traseiro” e chorando para uma platéia atônita, aguardando o meu choro. Um legítimo “pau-de-arara”? Não sei. Só sei que perdôo aos meus agressores, pois, graças à primeira surra e conseqüente choro, ficou provado até hoje que nasci com vida e, ao respirar e chorar, fiz jus ao art. 2º do Código Civil Brasileiro, adquirindo personalidade e me tornando legítimo herdeiro da inexistente fortuna dos Moreira de Abrantes.

Deixem a inexistente fortuna dos meus pais quietinha e voltemos para “titia”. Quando era pequeno, ela me pegava pela mão e me levava para onde ia. E eu gostava. Neto de “dona Nininha” (mãe de titia e da minha mãe), sempre gostei de “bater perna mundo afora”. No caminho, quando via algumas palavras numa placa, ou numa parede e, no meio delas, aquela letra, eu puxava a barra da saia de tia Maria e apontava o dedo para minha letra. Dedo pequeninho, frágil de uma criança de mão delicada e desarticulada. Dedo de Renato, apontado para o “R” de Renato.

A escola viria anos depois, mas, mesmo antes do primeiro dia de aula, na salinha de Zenaide (minha primeira professora – queria saber por onde anda!), já sabia como escrever o meu nome. E ele começava com a letra que “titia” me ensinou a reconhecer em meio às demais. Ela gostava do “r”, e eu também gostava! Sempre gostei do meu nome. É lindo, não porque é meu, mas porque é bonito. “Renato”, que começa com “r”, a primeira letra que aprendi a amar. Significa “renascido”. A partir do meu nascimento, marchando inevitavelmente para a morte, sempre tive que “renascer” a cada dia, como ainda hoje faço e como sempre terei que fazer, até o momento em que, enfim, não precisarei mais renascer: já terei renascido para todo o sempre, no céu.

A partir dali, em casa mesmo, as outras também foram se tornando íntimas minhas, de modo que escrever e ler, contrariando o medo de minha mãe, foi fácil pra mim. Encantei-me com a possibilidade de juntar um “r” com um “e” e produzir um fonema: “re”. Rabiscar letras e produzir sons. Isso não é encantador?

Talvez para nós, adultos, não! Talvez tudo isso seja bem infantil. Mas, para uma criança (e para um educador), o mundo das letras é fantástico. Com elas, formamos sílabas, e com as sílabas, palavras que, verbalizadas, produzem sons. Sons bonitos de se ouvir, como “Deus”, “amor”, “fé”, “paz”, “bondade”, “carinho”, “compreensão”, “perdão”. Palavras bonitas de se escrever. Sons bonitos de serem pronunciados. Melhores ainda de serem vividos.

Porém, crescendo, conheci também o lado ameaçador das palavras. Como todo menino, aprendi a chamar palavrão. E, ingenuamente, comecei a repeti-los (e a escrevê-los também). Mas, frente à reprovação de “titia” e de tanta gente grande, percebi que aquelas letras e sílabas unidas não formavam nem palavras, nem sons, muito menos uma vida bonita. Eles eram feios! Tenho até vergonha de reproduzi-los aqui, nesta coluna, mas o farei, para que ninguém tenha a tentação de escrevê-los, pronunciá-los ou vivê-los: “demônio”, “ódio”, “indiferença”, “guerra”, “maldade”, “violência”, “incompreensão”, “vingança”.

Esses foram os piores palavrões que aprendi e que, infelizmente, como todo menino que cresce, carrego um pouquinho de cada um comigo. Hoje, depois de 29 anos de existência, lembrando do colo aconchegante de “titia”, confesso que não deveria ter aprendido nem a escrevê-los, nem a pronunciá-los, tampouco a vivê-los. Ela não me ensinou isso. Foi o mundo mau que também queria me ensinar muitas outras coisas ruins. Por sorte, outras “titias” e “titios” (Zenaide, Teresa, Paula, Piedade, Astânia, Carmelita, Francisquinha, Graça, Gervásio, Antônio Luiz, Agripino, Luísa Moisés, Ieda, Eronildo, Acúrcio, Adélio, Adriana, Claudino, Vasconcelos, Everaldo, Walmir, Romero…) apareceram na minha vida de aprendiz das letras, das harmonias e do ser, e me recambiaram para a estrada certa. Renascer é aprender sempre.

Consola-me o fato de possuir uma “borracha” com a qual apago, desde já, os palavrões: a borracha da “consciência” de um adulto bem crescido que, tranqüila, pode agora ajudar os outros a aprender o “be-a-bá” das letras, dos sons e da vida.


Os textos dos colunistas e blogueiros não refletem, necessariamente, a opinião do Sistema Diário de Comunicação.

José Anchieta

José Anchieta

Redator do Jornal Gazeta do Alto Piranhas, Radialista, Professor formado em Letras pela UFPB.

Contato: [email protected]

José Anchieta

José Anchieta

Redator do Jornal Gazeta do Alto Piranhas, Radialista, Professor formado em Letras pela UFPB.

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