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Mariana Moreira

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Lembranças que humanizam

26/07/2019 às 08h53

Coluna de Mariana Moreira

Na pressa cotidiana sou abordada na rua.

– Mariana, ainda tenho guardado o jornal com a crônica que você fez para meu pai.

O meu interlocutor é uma figura bem conhecida na cidade. Funcionário de uma concessionária de automóveis se destaca pela intensa paixão que devota ao seu time de coração e de onde vem o seu apelido: “Flamenguinho”.

O seu pai não conheço. Mas o filho atualiza minha relação com seu genitor.

– Meu pai é aquele senhor, vendedor de leite, que andava em uma carroça pelo centro da cidade, sempre acompanhado por seus cães. E que, há alguns anos atrás, você escreve sobre ele, destacando a relação que ele tinha com os animais.

A memória se restabelece e retomo a imagem que me despertou o olhar de afeto. Um homem, com sua carroça puxada a burro, com vários tonéis de leite que eram distribuídos aos fregueses pela cidade. A atenção da cena era para os cães que, de forma disciplinada, seguiam seu dono num compasso permanente e num encadeamento que revelava os laços de carinho, respeito e interação entre homem e bichos.

Atualizo-me sobre o paradeiro dos personagens, não mais visualizados pelo centro da cidade. Ele me informa que seu pai ainda mantem a distribuição de leite na carroça e continua sendo acompanhado pelos inseparáveis cães, mas que, por questões de segurança, o faz apenas na parte norte da cidade, onde o tráfego de veículos é menos intenso e, portanto, com reduzidos riscos a sua segurança, e de seus amigos caninos.

E me relata a intensidade dessa relação, narrando que, certa vez, no sítio, o pai sofre um acidente que lhe causa sérios problemas em um dos braços, e os cães, amigos, fincam guarda, não permitindo a aproximação de pessoas estranhas, somente baixando a vigilância quando da chegada do filho.

E, retomando a imagem do vendedor de leite e de seus cães, me inspiro em tantos desenhos da relação que os homens estabelecem com a natureza, e me entristeço. Uma relação que, majoritariamente, traz a marca do domínio, da sujeição, do julgo. Relações que produzem e constroem, como frutos, a destruição, a eliminação, o silenciamento.
Quando a árvore perde sua condição de produtora de alimento e abrigo, para se converter em lucro, produz o desmatamento, inventa a desolação da terra nua e escaldada por chuvas e sóis e nos traz como tributo, aquecimento do planeta, tragédias humanas traduzidas em enchentes avassaladoras ou secas calcinantes.

E insistimos em não aceitar o exemplo do vendedor de leite, preferindo a alternativa da morte. Morte, muitas vezes, refletida nos tristes olhos de cães que encontramos perambulando pelas ruas de nossas cidades reclamando apenas uma carroça de burro para seguir e o afago de uma mão humana para lhe acariciar a cabeça e lhe alimentar o estômago.
E me inspiro no poetinha Vinicius de Moraes para acreditar em possibilidades de vida, ou vidas, e canto:

Lá vai São Francisco pelo caminho
Levando ao colo Jesuscristinho.
Fazendo festa no menininho
Contando histórias pros passarinhos.


Os textos dos colunistas e blogueiros não refletem, necessariamente, a opinião do Sistema Diário de Comunicação.

Mariana Moreira

Mariana Moreira

Professora Universitária e Jornalista

Contato: [email protected]

Mariana Moreira

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