As selas de Joaquim de Brito
Quando os cabras chegaram à casa grande da fazenda de meu avô para prendê-lo, foram recebidos por sua mulher que lhes informou ter seu marido viajado. Desconfiados, os homens de Floro Bartolomeu conferiram com os olhos o que havia na varanda, no corredor e na sala. Atrevidos, percorreram outras dependências do imóvel, até mesmo recantos íntimos, a procura do dono da casa. Nada encontraram. Viram, porém, escanchadas numa forquilha do terraço, duas selas de montaria e, apontando para elas, perguntaram à minha avó:
– Como é que a senhora diz que seu marido está viajando, se as duas selas estão penduradas ali?
– Quem tem duas selas não pode ter três ou quatro?
Assim, altaneira, respondeu dona Joana Sales de Brito, minha avó, com a segurança de quem não temia enfrentar jagunços e fanáticos do padre Cícero Romão Batista, travestidos de policiais de fato, em perseguição aos que não rezavam pela cartilha política do chefe Floro Bartolomeu. Essas milícias eventuais andavam à caça de pessoas que, mesmo sem envolvimento partidário ostensivo, como era o caso de meu avô, não demonstravam entusiasmo pelos objetivos e pelas táticas da luta política, seguidos pelos homens mobilizados para derrubar o então governador do Ceará, coronel Franco Rabelo.
Minha avó mentiu. De fato, seu marido não estava em casa, mas também não viajara. Encontrava-se escondido num capão de mato, próximo a sua casa, graças ao alerta de uma pessoa amiga que o avisara da aproximação dos capangas de Floro Bartolomeu, a tempo de sair às pressas para evitar os maus tratos e a prisão, frustrando assim o intento de seus perseguidores. Joaquim Sales de Brito, meu avô materno, era proprietário rural e negociante em terras do Cariri, onde nasceu, e desenvolvia suas atividades de agricultor e comerciante, afeito a longas andanças de Lavras da Mangabeira a Fortaleza, a transportar mercadorias em lombo de burro, numa época em que os trilhos da estrada de ferro ainda estavam distantes da região sul do Ceará. Depois da chamada Guerra do Crato e Juazeiro, (1914) sua vida virou um inferno, tantas eram as investidas contra ele e muitas outras famílias que não lhe restou senão migrar para a Paraíba, por ele eleita como sua nova terra. Aliás, não foram poucas as pessoas a adotar o mesmo caminho, como registra a história naquele começo do século 20, a exemplo da família Gonçalves, que se instalou, provisoriamente, em Cajazeiras, onde nasceu uma criança, que mais tarde se tornou político com atuação no Cariri e chegou a se eleger senador da República, como representante cearense: Wilson Gonçalves.
Essa história, a resposta atrevida de minha avó materna, foi passada de boca a boca, gerações seguidas. Eu escutei inúmeras vezes a narrativa feita por minha mãe, dona Isabel, como lembrança de menina, ela que tinha menos de 10 anos de idade no dia em que os cabras de Floro Bartolomeu tentaram prender meu avô. Minha tia Inácia, por ser a filha velha de Joaquim de Brito, era a encarregada de levar-lhe comida e água. E só ela sabia de seu esconderijo, por instintiva medida de segurança.
Esta crônica tem o sentido de homenagear à família de minha mãe e todas as pessoas vítimas das perseguições políticas, de mistura com senhas fanáticas que prosperaram numa época em que se tornava difícil separar capangas, cabras, cangaceiros, romeiros e fanáticos.
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