A rua em que eu morava
A rua em que eu morava tinha cadeiras nas calçadas e, nas noites quentes de verão, uma prosa sincera e descontraída aguardava a chegada do aracati. Nestas conversas vizinhos se aproximavam, amizades eram inventadas, crianças viviam a infância, enquanto jovens sonhavam a vida.
A rua em que eu morava meninos brincavam de bola de gude na calçada de chão batido do Cine Pax. As coloridas bolas de vidro rodopiavam no ar na força impulsionadora de fortes polegares, refletindo o mundo em sonhos e inocências.
Na rua em que eu morava meninas pulavam amarelinha nas calçadas de frente de casa saltando casas, mostrando destreza de bailarina ou de saci pererê. Meninas que ainda sabiam sonhar a infância e idealizar castelos de príncipes encantados e reinos imaginários de fantasias e possibilidades irreais.
Na rua em que eu morava os vizinhos se conheciam pelo nome e trocavam amabilidades como algumas colheres de pó de café, uma cabeça de alho, um gesto sincero de apoio. Amabilidades sempre retribuídas com o carinho da amizade e a certeza de que todos estariam sempre disponíveis para viver a vizinhança.
A rua em que eu morava tinha um maestro que sempre andava assoviando uma nota musical e cujo filho tirava lindo solos de clarinete como a entoar sons mágicos que tornavam o mundo e a vida mais doces e mais românticos. Solos e sons produzidos como declarações de amor a mulher amada e profissão de fé à vida.
A rua em que eu morava tinha um policial aposentado que nos embevecia com suas façanhas e bravatas, muitas das quais superdimensionadas pelo seu avantajado destempero e por nossas imaginações férteis e pródigas de crianças e adolescentes.
Na rua em que eu morava as tardes de domingo ainda abrigavam rodas de jogos de cartas em muitas calçadas. Rodadas de sueca animavam e revelavam sutilezas e habilidades de velhos jogadores ante uma animada e curiosa assistência de aprendizes. Todos envolvidos apenas pelo sentimento de brincadeira.
Na rua em que eu morava a televisão ainda era novidade de poucos e muitos se acotovelavam nas salas de estar de vizinhos para, nas tardes de domingos, assistir ao programa do Silvio Santos ou se deliciar com as peripécias do Pica-pau. Imagens de um mundo em preto e branco, embaçado de chuviscos causados pela má recepção de sinais.
Esta rua em que eu morava não existe mais. Desapareceu nas brumas do tempo e uma de suas derradeiras lembranças se dissipou com a morte de Dona Chica, vizinha por longos anos e em cuja sala de estar aliviava as saudades da casa paterna com as novidades que chegava pelo mundo da mídia eletrônica. Hoje, as casas são apenas registros de um tempo passado. E as bolas de gude dos meninos na calçada de chão batido do Cine Pax foram soterradas pela modernidade do cimento. Tudo se desmanchou no ar como os sons das vozes e os solos de clarinete.
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