A freira e a prostituta na República
No Brasil, o catolicismo foi a religião oficial na Colônia e no Império. Quase quatro séculos de vinculação institucional. Tempo de sujeição ao Estado, a Igreja no desfrute de privilégios oficiais. E de sofrimentos também. Basta lembrar a prisão de dois bispos quando da chamada “questão religiosa”, no final do reinado de Pedro II. Na República deu-se a separação, formalizada pelo decreto nº 119 A, de 7 de janeiro de 1890, contra o qual levantou-se, firme, o clero brasileiro através de Pastoral Coletiva, de 19 de março daquele ano.
Cinco meses depois, mais outra manifestação coletiva. Desta vez em forma de Reclamação do Episcopado, de 6 de agosto de 1890, assinada por 16 bispos, incluindo os coadjutores. A quem reclamaram os bispos? Ao marechal Deodoro da Fonseca, o novo mandachuva, que encaminhara ao Congresso o projeto de lei da primeira Constituição da República, em cujo texto havia dispositivos, considerados nocivos à Igreja Católica Apostólica Romana, por serem baseados em “funestos princípios que prevaleceram na acelerada redação desse documento gravíssimo”, segundo o documento da Igreja. O episcopado reclamava de quê? De muitas coisas. Em linguagem respeitosa, os pastores católicos contestaram diversos pontos do projeto da Constituição, a seguir realçados.
O projeto escancarava as portas a todos os cultos, nivelando verdade e erro. Menosprezava o tradicional casamento religioso ao exigir a precedência do ato civil, retirando assim a bênção de Deus da união entre mulher e homem. Privava o clero do direito de representar os cidadãos “nos comícios da nação”, nivelando seus membros aos analfabetos, aos sentenciados, aos banidos, aos mentecaptos e os reduz “à ínfima esteira de párias em nossa própria pátria.” O projeto defendia também a expulsão dos Jesuítas e a proibição de ministrar aulas de religião nas escolas, além de ameaçar de esbulho os bens da Igreja. A essa tentativa, os prelados brasileiros recordaram ao marechal Deodoro o que ele próprio já prometera: “Dos bens das ordens religiosas não se há de tocar numa pedra!”
Os bispos reclamaram ainda contra a cláusula que proíbe o funcionamento dos estabelecimentos religiosos no Brasil. Sua adoção seria um golpe de morte na Igreja, cujas ações eram desenvolvidas por muitas entidades espalhadas no território brasileiro, desde sempre. Aqui a reação do clero foi convincente. Diz o documento episcopal:
“Se uma jovem quer atirar-se ao abismo da prostituição, a polícia da República abre alas respeitosas, e a deixa passar, dizendo-lhe: Está no seu direito, é livre de dirigir a sua vida como quiser. Mas se ela se encaminha a um santo asilo para aí viver castamente com amigas piedosas, entregando-se juntas a obras de religião e castidade, tendo por única família a grande família dos desgraçados: Alto lá, lhe diz a polícia, não tendes licença, isso é proibido pela Constituição da República!”
Impossível resistir à argumentação exposta com tanta clareza. Resultado: muitos dispositivos do projeto foram escoimados do texto original apresentado pelo marechal Deodoro da Fonseca. Essa foi uma das lutas iniciais da Igreja com o novo regime republicano, contaminado das ideias positivistas e anticlericais do final do século 19.
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