Telefones e malas
Cajazeiras, início da década de 1970. A casa situada no final da Rua Dr. Coelho, embora raquítica, parecia ampla para abrigar um punhado de irmãos, tios, primos que ousaram desafiar os parâmetros dominantes e vencer a tradição de meros alfabetizados que sabiam apenas e somente ler, contar e assinar o nome; atributos necessários e suficientes para a vivência cotidiana de pequenos lavradores e de eleitores encabrestados.
O imóvel do nosso avô Manoel Firmino não tinha recursos arquitetônicos sofisticados. Apenas uma estreita porta acessada por íngremes degraus, duas magérrimas janelas e parca mobília. Alguns tamboretes, uma mesa cambaleante, um pote, amassadas panelas de alumínio e esfumaçadas panelas de barro, um fogão a carvão.
A fartura apenas das redes, ainda impregnadas pelo odor da urina noturna e enroladas nos armadores numa composição exótica e nada estética. Muitas entreçadas e puídas, exigiam esforço sobre humano para não arrebentar na madrugada ou em meses longínquos da safra de algodão.
Todos alunos do Colégio Estadual cujo acesso, nos meses de invernada, somente era possível pela rua Santo Antônio. Colégio cuja espinha se projetava nos fins de tarde em poentes róseos e que compunham a paisagem com o recorte longínquo do Serrote do Quati emoldurando nossos sonhos e saudades da casa paterna.
As calçadas ainda eram tranquilos espaços para as brincadeiras de mata-mata, amarelinha, barra bandeira, aglutinando em gritos, arengas e peripécias os urbanos e os beiradeiros. Meninos e meninas que se misturavam sem as prevenções dos bullings ou dos preconceitos. Apenas crianças vivenciando o estágio da vida que permitia sonhar e gritar de prazer, ou de susto das estórias da trancoso e visagem.
Aos domingos, ainda nas primeiras horas da manhã, o acanhamento cedia terreno para o desejo de visitar a casa paterna. Com a permissão da generosidade do guarda Dudu acessávamos a casa de Dr. Epitácio para usar o telefone e saber de Tio Espedito que horas ele estaria passando para o Cipó. A casa de Dr. Epitácio era das poucos que já dispunha da modernidade do telefone e, em função de sua condição de homem da política, prefeito da cidade, o recurso tecnológico era incorporado ao patrimônio público de uso comum.
Estabelecido o contato com o tio, ficávamos na espreita da camionete Chevrolet verde e branca, onde nos amontoávamos na direção do sítio e de um domingo de atualização da presença do espaço e das figuras paternas. No início da noite, cansados do dia de prazer e produtor de saudades, nos espremíamos entre cestas, sacas de carvão vegetal, sacos de milho verde e outras coisas mais que a produção da estação oferecia como novidade. Até o domingo seguinte quando, mais uma vez estávamos logo cedo na casa de Dr. Epitácio encurtando distancias e aproximando informações que nos levariam a Impueiras.
Mais tarde, ao som de Caetano Veloso, a rua Dr. Coelho retorna como flagrantes de um tempo de lutas e desafios quando o grande mérito era ter uma “mala de couro forrada com pano forte brim cáqui”.
E, adianta o poeta:
“E quando eu me vi sozinho,
Vi que não entendia nada.
Nem de por que eu ia indo.
Nem dos sonhos que eu sonhava
Senti apenas que a mala de couro que eu carregava
Embora estando forrada
Fedia, cheirava mal”
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