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Cristina Moura

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Sangue negro e cheiroso

10/04/2020 às 01h10

Sangue negro e cheiroso

Por Cristina Moura

Por entre uma página e outra, acertei meus ponteiros, num relógio mental descoberto pelas lavadeiras, fadas do cotidiano. Pelos cantos da brochura, embrenhei-me nas plantações de cana-de-açúcar, assisti a todas as possíveis lamentações do doidinho em seu mundo de perguntas, raspei incontáveis tachos, derramei meu sangue negro e cheiroso. Por entre uma e outra, senti a chibata, mas também assinei decretos e autorizei demolições; por entre uma e outra, as correntes doeram, mas apertei gatilhos. Por entre uma e outra, roí as unhas, mas vesti a echarpe.

Sem esperar, por certo, mas parte de mim poderia prever, senti cada batuque baiano, em outras plantações, as de cacau. Senti cada amargoso daqueles diálogos construídos por um amado, uma sentinela do seu povo, um alçador de desejos, um degustador de canela. Por entre uma página e outra, meu passaporte nem havia sido carimbado de forma oficial, mas comemorei os desafios românticos de uma moça de lábios de mel, infiltrando-me naqueles ipês floridos, devagar, ao passo que ousava conhecer as macabéas.

Nem era preciso pedir licença. Senti o maravilhamento daquilo, dada a minha natureza intrometida, de gente que necessita de fontes, fontes com pisadas sobrenaturais, fontes que mastigam o passado, fontes límpidas e sedosas, fontes barrosas de diálogos efervescentes, fontes a pensar a partir de anéis saturnianos ou aqueles da sociedade nórdica.

Por entre um suspiro e outro, meu senso mochileiro nem se tocou que tudo poderia mudar, tudo poderia renascer a cada linha completa ou livre, a cada rima ou a cada parágrafo, a cada tenda ou ramalhete. As pontas dos meus dedos dedilhavam uma febre de querer uma compreensão imediata, mas, por graça divina, cada degrau conduzia a um compartimento do cérebro, cada degrau me ensimesmava ou me expandia.

Que magia seria essa, tão nobre e avassaladora, não pude saber de imediato. Por entre um painel adocicado e outro, aparecia o navio de imigrantes, apareciam as geadas e apareciam os milhões de olhares e apareciam as bonecas de pano, os viscondes, os sacis, as cucas. Lembrei-me, ainda, que a viagem não é finita, que entre uma página e outra há uma pausa profunda e etérea, que entre um espaço e outro há uma passarela de realismos, de fantásticos, de lamentações e felicidades, de passaredos e passarinhos.

Como explicar ao outro o que senti quando entrei naquela vila, como explicar ao outro que me perdi naquela selva, como explicar ao outro o que vi quando naveguei naquele edifício no centro do oceano. Como explicar que, a cada virada de página, um som saía pelas costuras do papel; como explicar que, a cada cheiro de celulose processada, viria também o cheiro daquelas ruas cariocas, com Policarpo me escoltando.

Por entre uma lágrima e outra, até gargalhei e refiz meus redemoinhos, molhei a horta de ideias tontas, aprumei a coluna, mirei o alvo de possibilidades, sorvi o caminhar das mitológicas crateras: reli. Como explicar ao outro que a releitura é mais um cartão de embarque, como explicar ao outro que a imagem é texto etiquetado de conceitos e deflagrações, como explicar ao outro que a bula faz todo sentido místico, como explicar ao outro que a receita do brigadeiro carrega o dom da catequese histórica, como explicar ao outro que o penhasco surgiu naquele capítulo, como explicar ao outro que a montanha foi escalada inúmeras vezes somente naquele trecho, como explicar ao outro que sertões me ensinaram a ser forte, como explicar ao outro que os caetés e cariris marcham com seus maracás de forma perene.

Foi num bilhete sem data, invisível, que meu disco virtual começou a girar numa velocidade parecida com a dos dromedários, na areia quente, com um café coado para se acomodar e admirar o alpendre. Por entre os confetes de uma página e outra, ouvi um sussurro cifrado, pequenas vozes gregorianas. Por entre os ladrilhos de uma página e outra, os sermões me auxiliaram. Por entre os odores de uma página e outra, contei as moedas. As portas se abriram.


Os textos dos colunistas e blogueiros não refletem, necessariamente, a opinião do Sistema Diário de Comunicação.

Cristina Moura

Cristina Moura

Jornalista e Professora cajazeirense, radicada no estado do Espírito Santo.

Contato: [email protected]

Cristina Moura

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Jornalista e Professora cajazeirense, radicada no estado do Espírito Santo.

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