Retalhos de memória
Por Mariana Moreira
A Semana Santa, em tempos de pandemia e isolamento social, povoa minhas lembranças de rituais e experiências que marcam flagrantes de vida e réstias de infância.
Um tempo em que, em todas as casas, das mais singelas as mais suntuosas, os santos são virados para a parede ou cobertos com panos de coloração roxa. Práticas que expressam sentimentos de tristeza e compaixão pelo gesto daquele que, com dignidade e altivez, defende suas convicções e propostas de mundo e de humanidade.
Um tempo em que, o chiado do velho rádio de pilha, com antena exposta no telhado, transmite curtas rádios novelas sobre a paixão e morte de Cristo. Encenações onde a arte é apenas a expressão da fé e o atalho para a condução de mensagens verdadeiras de amor e entrega a possibilidade de novos tempos ou um tempo novo.
Encenações que, interpostas pela ausência de imagens e cenários, permite a cada ouvinte construir e viver suas histórias. Não trazem, em nenhum momento, a marca do mercado que a tudo transforma em mercadoria e, em nababescos palcos e cenários, onde atores são escolhidos meramente por sua capacidade de audiência e atração de público. E o que era uma expressão de paixão pela vida e pela humanidade sedenta de justiça e fraternidade, converte-se apenas numa grande oportunidade de lucros e dividendos.
A Semana Santa tem a Sexta Feira Santa que reúne filhos e netos na casa de meu avô materno, Papai Manoel. Ali, sob a vigilância de pais e tios, fazemos jejum, embora pecados ligeiros e pueris sejam cometidos, como o degustar de uma goiaba esquecida em algum parapeito ou uma bolacha sorrateiramente abocanhada na prateleira da cozinha. E o alimento traduz também importância e significado nestes momentos, quando as frigideiras de bacalhau, tão ausentes no restante do ano, dividem com o feijão verde, a maxixada, o macarrão e o arroz o partilhar da vida que se refaz em pão e esperança.
A Sexta Feira da Paixão tem a assistência das três horas de agonia que primas, tias e amigas realizam na Capela de Fátima. Olhos infantis espantados com a resistência de permanecer às três horas em que, pelas Escrituras, o Cristo padece na Cruz, de joelhos, em silencio e rezando orações e preces introspectivas.
Curiosidade alimentada pela ausência ou raríssima presença masculina nestes momentos.
E, no domingo, a Semana Santa termina com a Ressureição efusivamente celebrada como momento de renovação. Novamente a casa de Papai Manoel é lugar de reunião e acolhida familiar. Em anos de fartos invernos, as prosas são amenas e mais suaves. Em períodos de secas, o tom triste da cinzenta paisagem alimenta palavras, gestos e sentimentos de homens e mulheres que, sem o verde do chão, veem afastar-se no tempo a possibilidade de renovação de vidas e gentes.
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