Poemas da cozinha
Por Cristina Moura
Palavras aferventam em rodelas de batata. Cheiro bom. Cebolas e circunflexos douram no azeite, aos pulos, em cada medida de pensamento. Palavras, outras, na frigideira. Palavras. Palavras que podem assar com alho. Os poemas na cozinha vêm de sobra, com asas de expectativa. Sem cópia. No congelador, dormem verbos raros, pouco comestíveis. Importante é o apurado, o aroma que clama respeito às cores da melodia. E, logo por ali, mirando o público, prateleiras enfeitadas com temperos em consoantes maduras. Prefixos, sufixos, pastéis na carne, quiches na lactose. Eita. Tudo refogado, em operação de alquimia, ponto a ponto. Ei. Pode entrar.
Nos rolos de fumaça, rondam versos em segundos, soprando em total sinfonia com o paladar. Tem silêncio. Sim. Pela fome, bisbilhotamos autorias, canjas e milagres. Mais verde, mais dança, mais ouvido: cebolinhas, coentros, salsinhas e salsões. Com zelo, letras se consomem, conversam com empadões e panquecas. Ecoam os versos livres, livres, com o aviso do manjericão. Versos e versos. Versos soltos e abençoados, em sequência, em cada folículo de alecrim. Nas cascas de banana, uma partícula, outro pedaço. Mel. Pode degustar. Observações, dicas, parênteses, e os punhados de devoção. E, no livro de receitas, abrem-se segredos em tônicas tão belas.
Mas, em tom sábio, no armário, um pomposo tacho de adjetivos pede um sentido. Pede um barril de molho apimentado. Pede rima, pede gula. Pede balanço, mais uma mexida, mais uma cesta de interrogações se desmanchando na manteiga das dores. Calma. O mugunzá pede milho e pede arrego. Opa. Tem feijão. Tem toucinho. Tem toicinho. Não é problema se o negócio é poema e se embrenhar numa matemática de desenhos nas preposições. Olha o verso. Segura a pança. Verso alado se aproxima e casa com a gordura. Hum. É para não evaporar, eu sei. Verso por verso, vem quentura de pronomes, além de saladas de crases e tantas especiarias nos títulos.
A silabada também esquenta, mas quando liberta a versificação. Espio os engravatados sonetos, tudo bem, em nhoques de vogais. Sim. Faremos os contatos, os mais assombrados. É que poema vem na vigilância do fogão: não deixemos o fundo pregar com as ideias. Poema chama concretude, poesia toca invisibilidade, e ambos se sentem. Matéria e espírito. Há bolsões simbólicos, sempre de graça, nas tigelas, nas favas. Comprovamos, então, tudo, na isca da língua. Doce, que é doce, não sei.
Quantas vírgulas e vírgulas numa feijoada. Avisei. Um carretel que convoca o batalhão ensebado, e aprisiona, vicia, lamenta, repete. É que a barriga poética engloba certas artimanhas calóricas e tangidas. Aí o estômago cobra os travessões, as falas, os hifens, as frases de geleia. Quantas reticências cabem por osmose, na força do cardápio. De bandeja, ingiro a prosa, prenso os detalhes, olho a formosura, tento ser imparcial. Mililitros, gramas, garfadas. Ei. Espera. Facas, desafios, comemorações. Gente. Gente. Muita gente. Liquidificadores de gente. Conjunções gostosas nos tomates viram o assunto. É que valorizamos o olhômetro, a experiência, a familiaridade, o descanso da massa, as bordas recheadas. Eita. Claras em neve.
Diante das entradas, confesso: devo compreender os jogos agridoces nas colheres. Os haicais, antepastos do outro lado do mundo, grelhados orientais, três linhas que se aprumam, em rezas com o tato dos artigos definidos. Ei. Toucas, luvas, aventais, por favor. Aquela pitadinha de sal com orquestrados odores em dias exclamativos. E hoje, só hoje, quero sussurrar com os advérbios, esparramada numa barra de chocolate. Velozmente, está ótimo. Crocante.
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