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Mariana Moreira

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Pobre heróis

11/12/2020 às 10h47

Coluna de Mariana Moreira

A música vai reverberando como um fatídico mantra enquanto a notícia ganha forma e realidade. “Meus heróis morreram de overdose. Meus inimigos estão no poder”. Os versos do poeta Cazuza embalam minha tristeza enquanto absorvo a verdade: morre Maradona.

A notícia me remete a outros nossos mitos e heróis e a memória de Sócrates, o nosso Doutor, me invade.

E como entender esses homens que, na inteligência de dribles e gols, se fizeram referência conduzindo bolas ou marcando tentos na defesa de meninos e homens? Que, além de gramados, holofotes, promessas vãs, são sujeitos políticos pensantes capazes de transpor o dourado e quimérico halo fluido da fama e expor o pernicioso glamour que faz do mundo do futebol a única e alienante possibilidade de mudança de vida?

Homens que enfrentaram e resistiram, embora, muitas vezes, por um doloroso preço e caminho, o fascinante, sedutor e perverso mundo de cartolas, patrocinadores, câmeras e telas televisivas que transformam potencialidades e habilidades em volumosos cifrões a movimentar um milionário universo de contratos, negociatas, passes e valores. Tudo convergindo para a triturante máquina de craques robóticos, acionados pelos remotos botões dos cofres e letras miúdas dos negócios que não foram ensaiados com seus principais protagonistas.

Um mundo de meninos cada vez mais precoces em idade e maturidade, induzidos pelo insistente discurso de que, obedientes e servis, terão uma vida de abundância material. Basta, para tanto, serem cordatos, nulos, impensantes. Agindo assim e, no campo, desempenhando com desenvoltura seus dotes e talentos, terá um futuro bem distante das lembranças de favelas e morros esquecidos, de mundos sertanejos negligenciados, de interiores miseráveis onde ainda prevalecem vontades de poucos.

Sendo bem-comportado, mesmo com o desumano tratamento escancarado pelo incêndio do Ninho do Urubu, será um sobrevivente que, radiante, se tornará personagem central do programa dominical de tv. Programa que revelará para outros tantos meninos craques que vale a pena ser alienado, servil, cordato e terá como merecido premio um time na Europa, uma casa de praia com piscina, o carrão importado.

Meninos para quem é banal e desnecessária a educação como direito humano, a assistência de saúde como prerrogativa de estado, as condições de trabalho de milhões de tantos outros meninos cujos talentos não se expressaram nos dribles da bola e que se anulam em trabalho infantil, na violência que mata milhões de jovens negros. Meninos para quem é insensível a mão da patroa branca que, na atualidade, troca chicote e tronco, pelo botão do elevador, arremessando para a morte o “estorvo” da vida humana.

E assim Maradona, Sócrates e alguns outros heróis nossos são devorados pela overdose de alienação que turva discernimento e borra qualquer possibilidade de ver o mundo do futebol além da bola, dos dribles, das paixões campeãs. Ver o mundo do futebol como um entre tantos outros mundos de trabalho, exploração, lucro.


Os textos dos colunistas e blogueiros não refletem, necessariamente, a opinião do Sistema Diário de Comunicação.

Mariana Moreira

Mariana Moreira

Professora Universitária e Jornalista

Contato: [email protected]

Mariana Moreira

Mariana Moreira

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