Outra Via Crucis
Por Mariana Moreira
Em cada rosto fincado de tristeza, fome, frio, abandono, vejo traços do rosto do Cristo que, coroado de espinhos, escorre filetes de sangue por nossas indiferenças e omissões, manchando, com o aviso do gesto redentor, nossa empáfia de seres supremos.
Em cada mão estendida na direção da esmola vejo as linhas e contornos das mãos cravejadas do Cristo a nos lembrar da nossa condição de iguais em espécie e humanidade. Mas, as mãos ensanguentadas de Cristo não nos sensibilizam para o sofrimento de tantos que, de mãos estendidas, querem, muitas vezes e somente, o calor de um aperto de mão a lhe restituir os derradeiros fiapos de gente.
Em cada peito dilacerado pelo sofrimento de tantas mortes desnecessárias e banalizada vejo o peito do Cristo transpassado pelas lanças de nosso egoísmo. Um egoísmo que nos encastela em nós mesmos, na desenfreada maratona do consumo, da posse do último lançamento da moda, do último modelo do hoje que amanhã será obsoleto, e nos turva a visão de tantos que, com suas chagas expostas, apenas reclamam o lenitivo para as dores de corpo e de alma.
Em cada pé descalço que pisa em espinhos, em cada caminhar que tropeça em cercas, muros, cadeados, enxergo os pés cravejados do Cristo que, mesmo afixado na cruz, nos mostrou e nos mostra o caminho da liberdade e da plenitude. E, no entanto, fechados em nossa presunçosa individualidade, não vislumbramos que a caminhada coletiva se torna mais produtiva e construtora de humanidade.
Em cada mulher negra, pobre, favelada, que chora sobre o corpo do jovem filho, inocentemente assassinado apenas por sua condição de preto e pobre, vejo o rosto de Maria, a Santíssima, aconchegando em seu colo o corpo morto do Santo Filho. E quantas Marias pranteiam seus rebentos enquanto, impassíveis, montamos frias estatísticas do crescimento do verdadeiro morticínio de nossa negra juventude que, diariamente, pontilham as manchetes de noticiários, enquanto, na isenção de nossa condição de branco e cristão, reforçamos os argumentos de que, “é apenas mais um bandido, e bandido bom é bandido morto”. E, preso na cruz o Cristo também foi, pelo Império Romano, condenado por ser bandido e marginal.
Em cada corpo de mulher que o feminicídio consome em forma de assassinato, estupro, silenciamento, vejo o corpo de Maria, a mulher, a mãe, a esposa, embalando em seu colo o corpo morto do filho. E como tantas mulheres que, estupradas em sua individualidade e autonomia, sequer podem embalar filhos, sonhos, vidas.
E a Via Crucis que, no cotidiano, marca nossas vidas, é caminhada por tortas linhas que, esquecidas em nossas vivências, são lembradas somente em mentiras sinceras.
Os textos dos colunistas e blogueiros não refletem, necessariamente, a opinião do Sistema Diário de Comunicação.
Leia mais notícias no www.diariodosertao.com.br/colunistas, siga nas redes sociais: Facebook, Twitter, Instagram e veja nossos vídeos no Play Diário. Envie informações à Redação pelo WhatsApp (83) 99157-2802.
Deixe seu comentário