O Sonho dos Excluídos
Por Padre Renato
Passando em um carro não dá para perceber que, sob a marquise de uma clínica perto de minha casa, ocultando-se na escuridão da noite daqueles que podem lhe atear fogo, está caído ao solo um homem, cuja situação das roupas denuncia sua posição dentro da nossa sociedade que, “nunca na história desse país”, mostrou-se tão hipócrita e cega.
O homem não está morto, está dormindo; sim, dormindo ali à proteção daquele espaço que lhe pertence, até que cheguem os primeiros raios do sol, que trará também a funcionária que abrirá a clínica, a exigir sua rápida retirada, para que os clientes, que também logo chegarão, não se sintam incomodados com a sua presença. O homem está aproveitando a posse temporária daquilo que é a sua casa, até que lhe digam o contrário. Mas, persistente, logo ao cair da próxima noite, estará lá, em sua casa de novamente.
Mas, como dito, só se percebe o homem jogado ao chão quando se passa pertinho dele, a pé. O carro, pseudo-sinal de um poder aquisitivo de poucos, não ajuda muito. É preciso sair dele, colocar o pé no chão e aproximar-se do recanto escuro que protege aquele homem; se faz necessário igualar-se a ele. Corre-se o risco de, mesmo a pé e de pé, não se perceber a sua presença imóvel, entregue aos seus sonhos. Talvez seja preciso, além de sair do carro e ficar de pé, abaixar-se até o homem que dorme e, quem sabe, ouvir o murmúrio de seu sono tranquilo, sono reparador de forças minguadas que o levaram a vagar o dia todo pela cidade, como um andarilho. Não há hálito de álcool, mas, sim, o odor da indignidade que nossa exclusão lhe impôs.
Com o que sonha aquele homem? Não sei, mas, é possível suspeitar. Agachado ao lado dele, um dia desses, observando-o dormir, e vasculhando se estava carecendo de alguma proteção, tentei desvendar os seus sonhos.
Suspeitei não ele não estava sonhando com um carro de última geração, com uma mansão da área nobre da cidade, ou com roupas de grife, objeto de desejo de muitos de nós, ingênuos; ele também não estava sonhando com uma conta-corrente gorda, ou com reconhecimento social, fruto de um hipotético ter. Talvez ele nem estivesse sonhando com as bolsas sociais viciantes que o governo dá (já que nem votar ele vota). Tive a convicção de que aquele homem, entregue ao relento, dormindo com roupas sujas debaixo de uma marquise, com um saco servindo-lhe de travesseiro, tinha sonhos modestos; ele sonhava apenas e tão somente em ser tratado como gente, em ter uma condição de vida digna; sonhava em ser respeitado em seus direitos mais intocáveis.
Sonhando assim, ele sonha com humanidade inteira; ele não está sozinho, muitos naquela noite (não poucos), na mesma cidade, no mesmo Ceará, no mesmo Brasil, no mesmo mundo, outros estarão debaixo de alguma marquise, ponte, ou mesmo dentro de algum esgoto, tentando encontrar em seus sonhos aquilo que não conseguem na realidade. E, quando isto acontecer, enquanto um homem, uma mulher ou uma criança estiver jogado ao chão por não ter uma casa onde se recolher e uma cama onde se deitar, é a humanidade toda – você e eu – que está sendo ultrajada. Sinta isso em sua pele.
Em pleno março de 2009, depois de tanto tempo ultrapassada a fronteira dos “novos tempos”, “homens que sonham” debaixo das marquises de nossos prédios (igrejas, inclusive) e dos nossos narizes, num grito silencioso de pedido de socorro.
Hoje à noite, quando deitar em sua cama, limpinha e cheirosa, agradeça a Deus por ela, mas peça-Lhe também que transforme essa realidade excludente de tantos de nossos irmãos.
Os textos dos colunistas e blogueiros não refletem, necessariamente, a opinião do Sistema Diário de Comunicação.
Leia mais notícias no www.diariodosertao.com.br/colunistas, siga nas redes sociais: Facebook, Twitter, Instagram e veja nossos vídeos no Play Diário. Envie informações à Redação pelo WhatsApp (83) 99157-2802.
Deixe seu comentário