O nosso racismo de cada dia
Por Mariana Moreira
Gostar ou não de música sertaneja é uma questão que transcende os limites do bom gosto ou da opção individual. Quando se consideram as linhas e fronteiras que separam os ritmos sertanejos, – inventados nos estúdios de uma indústria fonográfica que se orienta pelos parâmetros do lucro e da rentabilidade financeira e despreza qualquer prerrogativa de bom gosto e sensatez -, e os ritmos caipiras que surgiram como expressão das vivências e experiências dos grupos humanos nos mais diversos espaços geográficos e sociais do nosso país, podemos perceber como o sertanejo que, nas últimas décadas, vem sendo forjado como manifestação da cultura popular, não passa de uma perniciosa estratégia de comércio.
Tudo isso me ocorre no momento em que, de forma consternada, me encabulo com a quase invisível cobertura que os meios de comunicação dedicaram a morte do ator Antonio Pômpeo, um ator negro que, ao longo da carreira artística teve uma importância relevante como ativista cultural e de defesa dos valores, costumes e práticas culturais, religiosas, sociais, políticas das comunidades negras de nosso país. Práticas e valores que, ainda nos dias de hoje, são consideradas como desqualificadas, maléficas, diabólicas.
Como ator, e enquanto cidadão, Antonio Pômpeo teve uma destacada atuação na busca pelo reconhecimento dos espaços de atuação dos atores negros em nossa dramaturgia. Uma luta que resultou na mudança de mentalidade e de concepção sobre quais lugares sociais e políticos poderiam ser desempenhados pelos negros, escapando da subliminar, mas intencional concepção de que atores negros devem se contentar com figurações de empregados domésticos, motoristas, bandidos, marginais. Uma mudança que, embora lenta, começa a mostrar que a senzala começa a ocupar a casa grande, como nos mostram as pesquisas e estudos que revelam um crescimento de 230 por cento da presença de estudantes negros nas universidades brasileiras nos últimos 15 anos.
Mas, a pálida e acanhada cobertura que os meios de comunicação dedicaram a morte de Antonio Pômpeo, com os desdobramentos da importância de seu trabalho político na defesa do reconhecimento da cultura negra, escancara como ainda somos, de maneira entranhada e intensa, um país de marcante postura racista. O mito da democracia racial se esmigalha como miolo de pão dormido quando se observa que somente com a adoção de políticas públicas se assegura a presença e a ação e atuação de negros, indígenas e outras maiorias no cenário antes aristocrático e europeizado de nossa cultura e de nossa história. As políticas de cotas escancaram que somos um país miscigenado e segregacionista. Por séculos, escondemos nossas diferenças atrás dos biombos europeizantes das polcas, valsas que não conseguiam silenciar nossos lundus, batuques, afoxés.
E o silenciamento acerca da morte e da atuação cidadã de Antonio Pômpeo contrasta com a espalhafatosa cobertura dedicada a morte do cantor sertanejo Cristiano Araújo que, para muitos, inclusive eu, não passava de um mero desconhecido.
Uma pequena evidência do racismo nosso de cada dia. E alguém ainda se atreve a empunhar a bandeira do país da democracia racial?
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