Esdrúxulo espetáculo
Uma criança de cara adulta escondida entre linhas de fome e rugas de drogas precocemente consumidas estende a mão. A inocência corrompida pela agudeza da vida impregna e exala odores de álcool. Vista esfumaçada de pedras de crack embaça qualquer possibilidade de amanhã. E a ela se somam tantas outras crianças rotas como a perfilar um esdrúxulo exército de andrajos soldados da miséria, do abandono, da negligência.
Crianças órfãs de programas sociais que ensaiavam tênues possibilidades de reverter às cruéis condições da distribuição da renda no país. Uma renda que se concentra, cada vez mais, nas mãos de uma ínfima minoria que, historicamente, sempre teve o controle das riquezas e das vontades de fazer, mandar, calar, matar, desmatar. Como mostra o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), nos últimos dois anos, cresce assustadoramente a extrema pobreza no país. Um crescimento da ordem de 11%, saltando de 13,3 milhões para 14,8 milhões de pessoas que, atualmente, estão desprovidas de qualquer perspectiva de vida humana. Na mesma proporção, o rendimento médio mensal dos mais pobres, que representam 4,5 milhões de brasileiros, caiu 40%, baixando de R$ 76 para R$ 47 em 2017.
Esse dantesco quadro se complexifica quando se somam outros elementos reveladores da grave situação de desmonte pleno da ação e atuação do Estado. Crescimento da violência, em todas as suas variações. Retorno de epidemias que, há vários anos, tinham sido varridas de nossas estatísticas sanitárias. Desconfiguração das legislações e organismos que, historicamente, foram sendo instituídos atendendo a precípua tarefa de assegurar direitos e garantir possibilidades de dignidade, mesmo que mínima, para significativos contingentes da população, sobretudo, aqueles que, tradicionalmente, estão situados na linha de baixo da ordem econômica, jurídica, e política.
As alterações na legislação trabalhista, o corte dos investimentos públicos em políticas e programas sociais, a drástica redução dos investimentos em educação, saúde, segurança, vão expondo a apreciação pública o execrável espetáculo de um país que, recrudescendo em sua dignidade como povo e como nação, revela as feridas expostas de seu fascismo, de sua misoginia, de sua hipocrisia de “democracia racial”.
Os meninos que estendem as mãos disformes na direção da caridade pública ontem estavam na escola. O pai construía casas para o “Minha Casa, Minha Vida”. A mãe recebia o “Bolsa Família” e abastecia a despensa de fubá, arroz, macarrão, sardinha e, porque não, iogurte, presunto.
E hoje, como descreve a melancólica tristeza da melodia buarqueana, apenas,
Assumem formas mil
Uns vendem fumo
Tem uns que viram Jesus
Muito sanfoneiro
Cego tocando blues
Uns têm saudade
E dançam maracatus
Uns atiram pedra
Outros passeiam nus.
Os textos dos colunistas e blogueiros não refletem, necessariamente, a opinião do Sistema Diário de Comunicação.
Leia mais notícias no www.diariodosertao.com.br/colunistas, siga nas redes sociais: Facebook, Twitter, Instagram e veja nossos vídeos no Play Diário. Envie informações à Redação pelo WhatsApp (83) 99157-2802.
Deixe seu comentário