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Mariana Moreira

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Entre cães e homens, os brutos!

18/12/2020 às 11h22 • atualizado em 18/12/2020 às 19h36

Coluna de Mariana Moreira

Por Mariana Moreira

Cena trivial: na improvisada mesa do boteco os amigos se ajuntam para atualizar a prosa. A conversa segue entre um trago de aguardente e um gole de cerveja com uma variação de temas determinada pelas páginas das lembranças, das vivências cotidianas, dos episódios da comunidade.

A etílica qualidade da liberação de pudores e sensatez senta em um banquinho na mesa. Sobras de ressentimentos da última campanha eleitoral, pequenas malvadezas dos tempos de infância, sutis intrigas familiares assumem proporções de grandes tragédias e a prosa ganha calor e robustez. Vozes se alteram e incorporam outros tons; raivosos, potentes. E o que era apenas um casual encontro de amigos se converte em rinha para agressões e impropérios.

O grupo se dissipa. Em casa a roçadeira que, desde a mais tenra infância, lhe foi ensinada como necessária a sobrevivência entre juremas, mandacarus e a monotonia da caatinga, perde o descanso atrás da rústica porta e ganha força na sua habilidade de manuseio. Assim, saí a cata dos antes amigos de cachaça e prosa. Não os encontra. No caminho, preso por uma corda a um pé de juazeiro apenas um cachorro vira-lata como são tantos e todos os cachorros de Fabianos, Antonios, Joaquins, Josés. Com a destreza de quem teve a ferramenta como primeiro brinquedo ele desfere um lancinante golpe de roçadeira no animal, que agoniza com a coluna dilacerada
.
E os adjetivos vão assumindo proporções múltiplas e fortes: desumano, doente, desvairado, bruto. Alguns, mais afoitos, lhes deseja a mesma sina do vira-lata por ele ferido de morte. E a violência se dissipa e se mistura, como natural, nas práticas cotidianas. E perde sua compreensão de invenção humana.

Esquece que a mão que habilmente manuseou a roçadeira é a mesma que, na infância, foi arrastada para o trabalho árduo na roça, onde, entre espinhos, estiagens e calor, lhe foi ensinado que somente a brutalidade, a força, a violência são qualidades necessárias para a sobrevivência. E o menino cresce longe da escola, física e politicamente distante. No acanhado grupo escolar as linhas e páginas de cartilhas e livros não lhes trazia lições de vida. A sobrevivência não carece de letras, mas de destreza no uso da força. Afinal, estudar para que se o manuseio de enxadas e roçadeiras não consta como lição de livros escolares?

E a violência começa a ser ensinada e aprendida como a mais necessária lição. Necessária e “natural”, em todas as fases da vida. Com amigos, com mulheres, com crianças, com idosos, com animais. Apenas a violência lhe confere o mínimo traço de dignidade. E o cachorro vira-lata mortalmente golpeado amanhã será a mulher, um filho, um amigo, uma árvore ou o que se apresente como obstáculo ao exercício pleno da vida como expressão de brutalidade, violência e rudeza; atributos “naturais” a quem é negado o direito de humanidade.


Os textos dos colunistas e blogueiros não refletem, necessariamente, a opinião do Sistema Diário de Comunicação.

Mariana Moreira

Mariana Moreira

Professora Universitária e Jornalista

Contato: [email protected]

Mariana Moreira

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