“E daí?”
E daí?
Simples palavras?
Não.
Estudiosos, – embora em tempos de terra plana a ciência seja suspensa a condição de excrecência -, apontam que as palavras não são inocentes. Mas, produções históricas que incrustam sentido ao que se narra, como se narra e como se registram as narrativas.
Assim, o sociólogo francês Pierre Bourdieu argumenta que a fala, enquanto expressão social dos homens em suas interações com outros homens e com o meio, bem como, as forma como falamos e como, regimentalmente, expressamos essa fala não pode ser compreendida de forma aleatória, pois essa fala está umbilicalmente associada as suas condições sociais de produção. Bourdieu reforça ainda que, em qualquer tipo de linguagem, não podemos desprezar as condições institucionais de produção e reprodução dos discursos.
Reforçando os argumentos de Bourdieu, outro pensador francês, o filósofo Michel Foucault nos ensina que “o novo não está no que é dito, mas no acontecimento de sua volta”, nos instigando a reflexão de que as coisas que são ditas o são a partir de determinadas intencionalidades, subjetividades, culturalmente pensadas. Ou seja, as palavras não são inocentes, por mais graciosas ou bisonhas que aparentem ser.
Assim, quando o presidente da república, em uma manifestação da mais bizarra grosseria e mais agressivo autoritarismo, expressa desdém com o crescimento das taxas de mortalidade de brasileiros em razão da disseminação da pandemia de COVID 19, não o faz apenas com a intenção de agradar e fazer rir a plateia de micos adestrados que, diariamente, se perfila em estúpida e alienada postura de veneração ao “mito”.
O “E daí?” traz, em sua volta, toda a expressão do sucateamento de nossos serviços públicos de saúde que, penosamente, representam a única possibilidade de assistência para a maior parte da população do país. Um sistema de saúde que, em sua quase totalidade, tem em seus quadros profissionais de vários matizes de formação, conquistada nos bancos das universidades públicas. Profissionais que se especializaram nas residências oferecidas por hospitais e entidades de pesquisa públicas.
O “E daí?” revela, em sua volta, a precarização das universidades públicas que, encolhidas em orçamentos e pessoal, ainda se constitui, no país, nos espaços responsáveis por mais de noventa por cento da pesquisa e da produção de conhecimentos e saberes que, em suas múltiplas configurações, vão possibilitando ao país construir o mínimo de autonomia e soberania. Neste momento aflitivo, muitos laboratórios e institutos de pesquisa estão povoados por homens e mulheres que, numa peleja insana contra a pobreza material e técnica, se animam na esperança de construção de soluções que tragam alento a uma população global estarrecida e amedrontada ante a avassaladora letalidade do vírus.
O “E daí?” não são simples e meras palavras no anteparo do gracejo de uma assistência alienada. Traduz políticas de estado que, insistindo no pagamento da dívida pública eticamente ilegítima e humanamente suicida, desviam recursos, investimentos e ações que deveriam ser aplicados em educação, saúde, assistência social, incentivo ao desenvolvimento humano, social e ambiental.
Assim, o “E daí?” poderia nos livrar do espetáculo deprimente de pessoas encharcadas em filas de banco pelo socorro de míseros reais ou pela humilhante imagem de trabalhadores sutilmente forçados por seus empregadores a se perfilarem, ajoelhados, em calçadas, reclamando o fim do isolamento social.
Assim, o “E daí? jamais pode ser entendido como mais um inocente gracejo do “mito”. Mas traz, em suas múltiplas circunferências, os sentidos de um país que optou pela morte, pela tortura, pela barbárie, pelo negacionismo.
E, como nos lembra mais um pensador francês, “tristes trópicos”.
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