Cantata para o jenipapeiro
Por Mariana Moreira
Seus galos espalhavam-se garbosamente esparramando sombra e abrigo para aves de cores variadas que gozavam de seus ramos para pernoites e ninhos. Saguis saltitavam em piruetas e gracejos buscando plateias de meninos travessos e de olhos inocentes que sonhavam com mundos mágicos e encantados enquanto deliciavam-se com teus frutos meio ácidos. Tua sombra também acolhia o cheiro das roupas no quaradouro alvejando pelo efeito do sabão caseiro feito com vísceras de porco e potassa. Das achatadas pedras das lavadeiras fios de espuma petrificados embranqueciam o terreno e quebrava o verde monocromático dos capins cebolinha que teimavam em ornar as ribeiras do riacho nas temporadas de estio.
A sua idade podia ser aquilatada pela dimensão centenária do seu tronco rugoso e pontilhado de reentrâncias. De forma harmoniosa dividia o espaço com a exuberante mangueira jasmim que, na temporada de safra, se transformava no alvo central de nossas brincadeiras e peripécias quando todos, munidos de rebolos, transformavam as mangas naturalmente amadurecidas em alvos para lançamentos nem sempre certeiros. Ao teu lado o pé de trapiá oferecia pequenos e doces frutos amarelados para galos de campinas, azulões, canários. No início das invernadas você dava guarida para o cansaço de homens, mulheres, meninos e meninas exauridos após a lida do plantio das baixas de arroz e que se jogavam displicentemente no chão saciando a sede com a água das cabaças enquanto ao longe já espocava o som dos trovões noturnos.
No início do século passado quando minha avó Mariana veio morar em Impueiras você ainda era um raquítico arbusto que dela recebia cuidados diários de aguar retirando a água que, de maneira minguada, minava do veio da cacimba de tantos degraus rebaixados a proporção que a seca esticava no tempo. Mais tarde, já árvore formada, teus frutos escorriam o líquido que, de maneira artesanal, mas com empenho, se transformava em deliciosos licores. Algumas década depois Mariana se exaspera com um sobrinho que propõe derruba-lo para transformar a madeira em gamelas para os engenhos de rapadura. Ora, como permitir tamanha desfaçatez e atrevimento com quem, em anos de secas rigorosas, saciava a fome de inteiras famílias privadas do básico alimento para manter-se na teimosia do viver.
Mas o tempo na sua inexorabilidade atuação segue como, no dizer do poeta, sendo um senhor tão bonito, mas implacável. Desse modo, mesmo sua exuberância não resistiu a ação silenciosa e sorrateira de cupins que, lentamente, foram devorando teu rijo miolo e interrompendo a seiva que te espalhava a vida em ramos e folhas. Fragilizado, tomba ao vento mais leve expondo tuas entranhas lanhadas e teus frutos minguados como a teimar em manter-se vivo a revelia da natureza que decretava tua sentença de morte.
E o velho jenipapeiro que, em minha infância, assistiu a tantos planos e castelos construídos de sonhos e esperanças, espalha suas murchas ramas no solo seco e empoeirado pela seca. Enquanto sabiás entoam melancólicos cantos como numa cantata de despedida ao velho companheiro de sombra e resistência.
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