Cantata para George e João
Por longos cinco minutos a voz foi reduzindo a intensidade. E o sinistro apelo, inicialmente potente, foi minguando em sussurros doloridos:
Eu não consigo respirar!
Eu não consigo respirar!
Eu não consigo respirar!
A violência ganha personalidade e legitimidade. Sem vida no solo jaz um homem, negro, trazendo na pele e na história experiências e impressões da escravidão que segrega, classifica, distingue humanos e coisa, gente e mercadoria, pessoas e riqueza.
Eu não consigo respirar!
E a voz silencia no corpo inerte deste nosso irmão George Floyd, norte americano de 46 anos, negro, brutalmente assassinado pela polícia.
Mas o grito e, depois, sussurro de George Floyd expressa outros milhões de gritos e sussurros de negros, índios, mulheres, favelados, em múltiplos espaços do planeta. Gritos de João Pedro, 14 anos, negro, morador de uma favela, o Complexo do Salgueiro, em São Gonçalo, no Rio de Janeiro, assassinado covardemente por policiais militares e federais. Agonizante, João Pedro foi removido pelos policiais a revelia de sua família, que, dias depois, o encontra sem vida em uma gaveta de necrotério.
As cenas da morte e sequestro de João Pedro não foram gravadas. Mas, nas consciências sãs de qualquer vivente ecoam murmúrios:
Eu não consigo respirar!
E os murmúrios traduzem outros tantos milhões de seres que, entubados em UTIs, ou agonizantes em expectativas inconclusivas de internações e cuidados médicos, também não conseguem respirar, infectados pelo vírus, mas, sobretudo, contaminados pela transformação da saúde em mercadoria e a explícita intenção de ordenar a humanidade por uma perversa categoria de ter, e nunca de ser.
Eu não consigo respirar!
Este também é o grito de tantos índios que, desterrados de seu chão pela inoperância do Estado, que legitima e autoriza garimpos, madeireiras, agronegócio, são asfixiados por fumaça e eliminados por tiros, doenças, degredos, usurpação de corpos e culturas.
Eu não consigo respirar!
Esse também é meu grito de dor, de medo, de pavor ante um contexto de práticas fascistas e intenções assassinas que, naturalizando o que é cultural e histórico, transforma a morte física, política, afetiva em trivialidade que deve ser matéria prima e roteiro de espetáculos midiáticos e farsas narradas como heresias e nódoas da decência.
Eu não consigo respirar!
Apenas Milton Nascimento me oxigena o viver:
Longe, longe, ou ouço essa voz
Que o tempo não vai levar
Precisa gritar sua força ê irmão, sobreviver
A morte inda não vai chegar, se a gente na hora de unir
Os caminhos num só, não fugir e nem se desviar
Morte vela sentinela sou
Do corpo desse meu irmão que já se foi
Desejo nessa hora tudo que aprendi, memória não morrerá
Longe, longe, ouço essa voz
Sentinela
Milton Nascimento
Os textos dos colunistas e blogueiros não refletem, necessariamente, a opinião do Sistema Diário de Comunicação.
Leia mais notícias no www.diariodosertao.com.br/colunistas, siga nas redes sociais: Facebook, Twitter, Instagram e veja nossos vídeos no Play Diário. Envie informações à Redação pelo WhatsApp (83) 99157-2802.
Deixe seu comentário