Avós, sótãos e camarinhas
Por Mariana Moreira
Os dicionários e os livros de filosofia, sociologia e outras áreas do conhecimento humano não me responderam a dúvida existencial: existe o sentimento de déficit de avó? A interrogação me acompanha desde a mais tenra idade quando as primeiras compreensões da vida apontavam para o vácuo da ausência desta figura que, no imaginário humano, até tempos bem atuais, exercia uma importante função de complementação das atribuições maternas. A casa da avó, com seus quitutes, afagos e histórias. As peraltices acobertadas, os pedaços de doces que quebravam a regularidade da alimentação correta, a rapa dos tachos de canjicas.
Não desfrutei desses deleites por uma contingência da vida. Minha avó materna, Francisca, morreu alguns anos antes do meu nascimento. Minha avó paterna, Mariana, de quem, garbosamente, herdei o nome, faleceu quando tinha apenas dois anos e de quem guardo, mesmo assim, difusas, minguadas e raras lembranças.
Mas, após uma reflexão mais acurada, percebi que a ausência de avós em minha vida não causou tantos estragos quando evoco outras figuras que, com suas qualidades próprias, corresponderam, de certa forma, ao desempenho das funções de avó. Na casa de Mariana, Madrinha Zefinha, a irmã mais velha de meu pai, que nunca casou e sempre habitou a casa dos meus avós paternos, ocupou, com galhardia, este espaço. As mangas jasmins deliciosamente amadurecidas na camarinha, os sabonetes presenteados nos aniversários, as vizinhanças de galinhas de capoeira partilhadas aos domingos, os bolos e biscoitos que faziam a alegria dos sobrinhos nas primeiras horas da manhã, quando iam levar seu balde de leite, as laranjas nativas e naturalmente amadurecidas no pé. Mimos e agrados que, certamente, seriam imitados por Mariana.
Na casa de Francisca, avó materna, a presença de Madrinha Neli, a segunda esposa do meu avô Manoel Firmino, por nós batizado de Papai Manoel, respondia, satisfatoriamente, as demandas dos netos postiços. Sua paciência com nossas peraltices nos muitos domingos dedicados por mamãe à visita a Papai Manoel. O leite com Toddy degustado em copo plástico com canudo já acoplado, as bananas maçãs, tão raras em nossa casa de Impueiras, os pedaços de queijo de coalho e rapadura fartamente espalhados em pratos de porcelana dispostos no aterro da cozinha e devorado avidamente nos lanches da tarde por mãos e bocas infantis impregnadas de terra e poeira dos terreiros transformados em palco para os folguedos infantis.
Madrinha Neli, legitimamente minha madrinha de Crisma, também recebe esse tratamento de outros irmãos, sobretudo os mais novos. Não apenas uma imitação despretensiosa, mas o reconhecimento de sua função em nossas vidas. Na sua casa passei alguns meses de minha infância e, na memória, ainda permanece vivo o sabor do delicioso doce de ovos que, de forma inesperada, ela preparava para acompanhar o lanche da tarde. A merenda da manhã, quando o mungunzá branco que sobrou do jantar anterior, era servido com coalhada escorrida e rapadura. O mistério do sótão inacessível a nossa curiosidade de criança e que, no inverno, deixava escorrer pelas frestas do assoalho de madeira a rapadura derretida que se espraiava no corredor e era inocentemente lambida por nós em aventuras heroicas.
Ora, como, então reclamar déficit de avós? Madrinha Zefinha e Madrinha Neli desempenharam, de forma magistral, esse espaço em nossas vidas. Netos tortos construindo sonhos e alimentando imaginários em casas de avôs que, de maneira singela, assumiam a configuração de mundos oníricos e universos mágicos, como o sótão da casa de Papai Manoel e a camarinha da casa de Madrinha Zefinha.
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