As ideias perderam o assento
E de repente:
"Aí vem sujo, a coçar chagas plebéias,
Trazendo no deserto das idéias
O desespero endêmico do inferno,
Com a cara hirta, tatuada de fuligens,
Esse mineiro doido das origens,
Que se chama o Filósofo Moderno!
Quis compreender, quebrando estéreis normas,
A vida fenomênica das Formas,
Que, iguais a fogos passageiros, luzem…
E apenas encontrou na idéia gasta, o horror dessa mecânica nefasta,
A que todas as cousas se reduzem!"
(Augusto dos Anjos, Eu, Outras Poesias Poemas Esquecidos, RJ, Liv. São José, 1971)
Vivemos um mundo de palavras onde há sempre algo a dizer, opinar, expor ideias, se expor. O ser se esconde expondo-se, assim ele é para o exterior. Somos o que quisermos parecer, o que precisarmos.
Inúmeras são as formas de expressão, perde-se o medo de polemizar, mas não o de se identificar. A não identificação com a ideia oposta do outro mostra a tentativa de se omitir, e quantos pseudônimos…
No mundo científico há diferença, as palavras são respaldadas, comprovadas, onde o ‘achismo’ é extremamente proibido. Eis a diferença, a sensatez dos pensamentos, coerência da fala, credibilidade, base, teor, as ideias tem o ‘assento’ necessário.
Nem sempre escrever bem quer dizer rebuscar frases com palavras de uso incomum. A glória literária dos grandes autores está em escrever de forma simples, clara e direta, pois quanto mais compreensível é a informação, mais eficaz, mas que por outro lado, deve deixar questionamentos, dúvidas, que leve o leitor a pensar, dê trabalho à reflexão.
Para todos nós, deixo uma das últimas peças de Gil Vicente, representado pela primeira vez em 1532, perante a corte de D. João III. "Todo o Mundo" era um rico mercador, e "Ninguém", um homem pobre. Belzebu e Dinato tecem comentários espirituosos, fazem trocadilhos, procurando evidenciar temas ligados à verdade, à cobiça, à vaidade, à virtude e à honra dos homens. Boa leitura e reflexão:
Ninguém: Que andas tu aí buscando?
Todo o Mundo: Mil cousas ando a buscar:
delas não posso achar,
porém ando porfiando
por quão bom é porfiar.
Ninguém: Como hás nome, cavaleiro?
Todo o Mundo: Eu hei nome Todo o Mundo
e meu tempo todo inteiro
sempre é buscar dinheiro
e sempre nisto me fundo.
Ninguém: Eu hei nome Ninguém,
e busco a consciência.
Belzebu: Esta é boa experiência:
Dinato, escreve isto bem.
Dinato: Que escreverei, companheiro?
Belzebu: Que Ninguém busca consciência.
e Todo o Mundo dinheiro.
Ninguém: E agora que buscas lá?
Todo o Mundo: Busco honra muito grande.
Ninguém: E eu virtude, que Deus mande
que tope com ela já.
Belzebu: Outra adição nos acude:
escreve logo aí, a fundo,
que busca honra Todo o Mundo
e Ninguém busca virtude.
Todo o Mundo: Folgo muito denganar,
e mentir nasceu comigo.
Ninguém: Eu sempre verdade digo
sem nunca me desviar.
Belzebu: Ora escreve lá, compadre,
não sejas tu preguiçoso.
Dinato: Quê?
Belzebu: Que Todo o Mundo é mentiroso,
E Ninguém diz a verdade.
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