A vida nas lembranças
A lembrança me chega no sopro de uma saudade que, em dias pandêmicos, se constitui em frequente exercício de sobrevivência. Não que a ociosidade encontre vaga para imperar. Pelo contrário, a redimensão do fazer exige uma carga de horas, esforços, gastos físico e mental cansativa e extenuante. Mas, a ausência de lugares e pessoas traz, como suporte de vida, retalhos de imagens, sons, vozes, cheiros, sabores que estavam adormecidos em arquivos de tempos idos.
E minha orfandade de avôs chega em um desses lampejos.
Papai Manoel foi o único avô que conheci. O seu cheiro de banho com sabonete alma de flores e do cigarro de fumo e, às vezes, desfiado, vagueia por memórias da menina enroscada em suas pernas buscando proteção para o medo dos caretas que, na Semana Santa, davam vida a malhação do Judas. E a sua respiração entrecortada pelos espasmos asmáticos o transformava em muralha a me guardar de quaisquer perigos.
O seu andar ligeiro e curvado. O chiado das sandálias havaianas que pareciam coladas ao chão, emitindo estalos ao caminhar. O seu jipe estacionado no terreiro e que, traduzindo modernidade, se convertia em espaço para brincadeiras e sonhos. A rede armada na calçada da frente da casa, nos fins de tarde, quando a prosa com moradores, visitantes, familiares atualizava a rotina e novidades da comunidade. Das safras de algodão às expectativas de chuvas até os pequenos, mas picantes, enredos das vidas privadas, tudo transitava pelo converseiro que se instalava entre a rede e cadeiras toscas de madeira e couro de boi onde ouvintes e proseantes dividiam o mesmo sentimento: a vida.
E, de repente, vejo Papai Manoel no gesto de afago em meus encaracolados cabelos, dividindo comigo o lanche da tarde composto de chá e biscoitos cream craker e seu olhar enternecido me fitando enquanto, sentada no chão da sala, tentava decifrar os primeiros códigos da carta de abc e da tabuada.
Mas, na janela da atualidade, o cachorro Severino me encara, latindo e reclamando a atenção para o hoje e sua ração. Procuro por Papai Manoel e não o encontro. No ar ainda paira sutis sussurros de seus passos e respirares. Um aroma de cigarro de fumo misturado ao odor do sabonete pós banho se dissipa como folhas secas rodopiadas pelos redemoinhos que enroscam a sertaneja paisagem em tempos de verão.
Uma aula remota reclama minha presença. O hoje, entre isolamento e novos fazeres, vai exigindo reinvenções e novidades que insistem em mascarar de normalidade o que foi convulsionado. E as lembranças do avô Papai Manoel não chegam com saudosismo, mas somente, como seiva que transita entre o ontem e o amanhã para fazer do hoje o possível a vida, pois “lembro-me do passado, não com melancolia ou saudade, mas com a sabedoria da maturidade que me faz projetar no presente aquilo que, sendo belo, não se perdeu. Lya Luft”.
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