A ilusão de Etelvina
Por Francisco Frassales Cartaxo
Sempre sorridente, nunca vi Etelvina preocupada, triste ou resmungona. No calor do fogão a lenha, lavando roupa, segurando o ferro de engomar alimentado por carvão, ao varrer a casa, dando milho às galinhas ou indo pegar os ovos no chiqueiro, em qualquer situação, as imagens guardadas na memória de criança são uma só: de alegria, riso largo, gargalhada. Não sei quantos anos conviveu lá em casa. Saiu numa boa, tanto que, vez por outra, aparecia para o cafezinho e um dedo de prosa com minha mãe, que gostava dela como alguém da família.
Que tempo era esse?
O Brasil vivia em lua de mel com a democracia liberal, finda a Segunda Guerra Mundial, Getúlio e o Estado Novo no olho da rua, voto direto e secreto garantido pela Constituição de 1946. Mas a euforia durou pouco. Internalizou-se o que pouco depois viria a ser a guerra fria, o radicalismo ideológico mundial predominante na década anterior de volta ao debate. Hoje, por dedução, imagino que a razão imediata da grande discussão política nacional era a proibição do funcionamento legal do Partido Comunista Brasileiro e a consequente cassação dos mantados de dezenas de deputados e senadores eleitos sob a legenda da foice e do martelo.
Não havia o termo fake news.
Mas a mentira corria solta. Dizia-se: comunista come criancinha. Aí, eu povoava a imaginação infantil de terríveis cenas de antropofagia, alucinantes berros de meninos, corpos dilacerados, sangue a escorrer pelo canto da boca… Bispos, padres e freiras enforcados no meio da rua para servir de lição! Padres salesianos, gestores do Ginásio Padre Rolim, a maioria italianos, moldados no clima de intolerância e ódio do tempo áureo do fascismo de Benito Mussolini, ajudavam a difundir que o comunismo vem aí para tomar as propriedades dos ricos!
– E dar aos pobres, sussurrou o pedreiro.
Nisto, Etelvina acreditava. Sou testemunha. A cena, já meio apagada, está gravada na lembrança. Etelvina ia passando na estrada que ligava o centro de Cajazeiras ao Ginásio Salesiano e ao Alto do Cabelão. Estrada de barro, com ponte de madeira coberta de piçarra. Não havia canal do sangradouro do Açude Grande nem calçamento nem Bar do Pirulito. Só o fértil baixio entre a estrada e a casa de meu pai, um sítio cheio de fruteiras, cacimbões e muita água. Pois bem, da estrada, Etelvina grita alto para todo mundo ouvir:
– Quando o comunismo chegar, eu só quero o sítio de doutor Cartaxo.
Minha mãe sorriu… ah, esse Etelvina!
Autor do livro, Guerra ao fanatismo: a diocese de Cajazeiras no cerco ao padre Cícero
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