Vaquejadas, entre espinhos e verdades
Até os doze anos a imagem das vaquejadas que cultivava era aquela cantada nos versos dos nossos trovadores. Imagem de homens bravos e destemidos que, na indumentária de couro, rasgava a caatinga espinhenta e mono cromática em busca dos touros barbatões. Homens que estabeleciam parcerias, ou quase irmandades, com seus cavalos, tornando-se, homem e animal, uma mesma identidade corporificada na necessidade de desbravar terras inóspitas, afugentar, quando não eliminar, seus habitantes nativos e estabelecer a atividade econômica da pecuária em rincões que começavam a ser colonizados e cristianizados.
As vaquejadas surgem, assim, num cenário de julgo e opressão. Os vaqueiros tinham que revelar destreza e imprimir valentia e masculinidade num mundo hostil. Eram conduzidos, pela necessidade da sobrevivência, a tratar os animais, que eram arrebanhados para a ferração, com brutalidade como a demarcar territórios e justificar a presença do colonizador em terras antes habitadas, de forma equilibrada, por índios, bichos e estiagens. O momento da apartação dos animais e da identificação de cada um com o ferro de seu dono se impõe também como necessidade de um tempo em que o ermo do sertão ainda não conhecia os limites das cercas e das fronteiras.
A vaquejada que enobrecia o fazendeiro muitas vezes mutilava homens e bichos. Vaqueiros que eram atingidos por animais mais arredios e sofriam danos físicos, muitas vezes, os incapacitando para a lida futura. Ficavam na mendicância e na caridade de um parente. Outros morriam de quedas, atingidos por galhos ou chifrados por reses mais agressivas. E, na celeridade com que a vida corria, mesmo com a lentidão morosa dos sertões, os vaqueiros mutilados, incapacitados e mortos eram rapidamente esquecidos.
Bom vaqueiro nordestino
Morre sem deixar tostão
O seu nome é esquecido
Nas quebradas do sertão.
Os animais, cavalos e bois, também não escapavam impunes. A necessidade de arrebanhar os bichos para o ato de ferração, muitas vezes, era seguido por atos de atrocidades, sobretudo, contra aqueles mais resistentes ou indócis. Membros decepados, patas quebradas, olhos vazados são apenas pequenas referências da dimensão de como a vaquejada, quando olhada pela perspectiva real de sua configuração sociológica, econômica e cultural, perde toda áurea de romantismo e inocência que se tenta desenhar nas telas e nas composições do amor do destemido vaqueiro pela sinhazinha filha do patrão.
Aos doze anos de idade assisti a primeira vaquejada em minha vida. Confesso que achei um espetáculo deprimente e sem qualquer indício que me sinalizasse aquele mundo de homens bravos e fortes, de sinhazinhas recatadas e insinuadas nas frestas das portas, de cavalos destros e bois insubmissos. Vi reses, muitas apenas novilhas, sendo submetidas a um espetáculo deprimente. Vi também interesses econômicos transformando, ou melhor, resinificando a atividade econômica da criação de bois nos sertões de outrora, em rentável fonte de lucros, onde bois, homens e natureza entram apenas como peça de um jogo de lucros e interesses.
E a lágrima que vi escorrer solitária e dolorida do olho de uma imberbe novilha, no final da pista de corrida, foi a imagem mais forte que hoje ainda guardo da primeira e única vaquejada que assisti.
Mariana Moreira
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