Utopias de Miguel Arraes
Por Francisco Frassales Cartaxo
“A utopia está no horizonte. Dou um passo, ela se distancia. Dou outro passo e ela novamente se distancia. Então para que serve a utopia? Para isso: para caminharmos”. Fernando Birri.
Miguel Arraes de Alencar morreu em 13 de agosto de 2005. Nove anos depois, desastre aéreo vitimou o neto-herdeiro político Eduardo Campos. Um agosto amargo e trágico. Arraes era então deputado federal, após brilhante e tumultuada carreira política. Foi secretário da Fazenda, deputado estadual, prefeito do Recife, três vezes governador de Pernambuco, sempre eleito pelo povo. O golpe de 1964 interrompeu seu caminho. “Saio do Palácio pela porta que entrei”, disse quando militares o prenderam no dia 1º de abril. Quinze anos de cárcere e exílio. Na sua ausência, não se falava dele. Nem dele nem de muitos outros. Até de Hélder Câmara, hoje em vias de tornar-se santo católico. O “sistema” proibia. Arraes voltou em 1979, anistiado. Sabino Filho, então estudante de medicina em João Pessoa, me espantou:
– Tio, quem é esse tal de Miguel Arraes?
Quase desmaio. Era assim na ditatura. Arraes, feito mito, retornou ao Palácio do Campo das Princesas em 1986. Governou à sua maneira pouco ortodoxa de definir prioridades. Não tinha entusiasmo com os incentivos fiscais, base da política de desenvolvimento do Nordeste. Ou com grandiosos empreendimentos turísticos para lazer dos ricos de fora, nas praias arrodeadas de miséria. Preferia investir em ações capazes de atender demandas seculares da população pobre. Ouvi dele várias vezes: “No dia em que o caboclo tiver energia elétrica e água, ele se liberta do latifúndio”. Por isso, seu maior programa foi o de eletrificação rural que, mais tarde, ampliado para o Brasil, virou “Luz para Todos”, Lula com os loiros. Seus olhos brilhavam quando falava desses temas.
Em março de 1997, eu era diretor da Agência de Desenvolvimento, quando o governador Arraes mandou me chamar. Desejava realizar transformação profunda na Zona da Mata e queria alguém com formação econômica e sensibilidade política para assessorá-lo. O desafio era grande, enfrentar enormes problemas daquela região, arruinada pelo declínio econômico e com perversa divisão social. Explicou-me então a natureza do problema e o sentido de minha participação na tentativa de sustar, de modo heterodoxo, o processo de decadência da zona canavieira. Queria complementar as ações conjunturais desenvolvidas na sua gestão anterior, por meio do “Programa Chapéu de Palha”, uma espécie de Bolsa Família para os trabalhadores na entressafra da produção de açúcar e álcool. E falou do perfil do assessor que procurava.
– Soube que você poderia me ajudar nisso, disse enquanto baforava seu cachimbo.
– Mas doutor Arraes, eu sou sertanejo, nunca entrei numa usina de açúcar…
Ele deu outra baforada, o olhar distante, talvez na lembrança do Cariri.
– Você conhece um engenho de rapadura?
– Claro, claro, em Cajazeiras se fabrica rapadura.
– Então é a mesma coisa, só muda o tamanho…
Disse, e soltou uma gargalhada.
Era 6 de março de 1997. Já deixei o Palácio com a tarefa de elaborar estudo sobre a Zona da Mata, sobraçando quilos de documentos, entre eles relações dos débitos trabalhistas de todas as usinas de açúcar do estado, extraídas dos cartórios da região, processo por processo. Dias depois, entre murmúrios, entregou-me uns papeis: veja se aproveita alguma coisa. Era o cerne do documento que, depois de trabalhado e discutido, “foi encaminhado, em junho de 1997, para o BNDES – Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social, com o objetivo de contribuir para o estabelecimento de uma nova política para o setor sucroalcooleiro de Pernambuco”, como explica a plaqueta Reestruturação da Zona Canavieira de Pernambuco.
Sem apoio de FHC, cujo vice era Marco Maciel, o programa morreu ao nascer. Mais uma utopia do doutor Arraes.
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