Um violão no dia dos namorados
Por Francisco Frassales Cartaxo
Primeiro aparece o violão, depois vejo o homem saindo do carro. Pela outra porta, desce a mulher em longo vestido preto. Quando atravessam a rua, nesgas de coxas brancas ficam à mostra sob o açoite suave do vento do domingo. Caminham para o restaurante, penso, música ao vivo, cantores, talvez marido e mulher, imagino, na luta pela sobrevivência, os artistas numa pior, nesses tempos de inseguro declínio dessa pandemia sem fim. Coitados, no dia dos namorados, em plena operação caça-níquel!
Mas serão mesmo profissionais?
Seguem pela rua, param no semáforo, dirigindo-se para famosa casa de pasto da zona Norte do Recife. Me afasto da varanda, meu respiradouro em época de isolamento social, a imaginação ruminante em estado de excitação. Volto a examinar a rua. Eita, lá vem o casal! Os dois, o vilão e mais uma sacola de supermercado na mão do rapaz. Vinho? Cerveja? Caminham na direção do carro branco, agora os vejo melhor, são jovens. Curioso. Não voltam para o carro estacionado na minha calçada. Param do outro lado da rua, na calçada em frente à portaria do Residencial Paraíso. O porteiro demora em autorizar a entrada.
– Vão tocar em alguma festa íntima de amigos, meu pai.
Meu filho, designer gráfico e poeta, que me acompanha na curiosa bisbilhotice, arrisca esse palpite. Quem sabe, nesse horário, festinha de criança. Os dois sumiram a caminho do elevador do mais novo prédio da rua Estrada das Ubaias. Mais tarde, noite alta, noto que o carro branco permanece no mesmo local. Então, não é folguedo infantil. Fui dormir desligado do casal do violão.
Pela manhã, meus olhos esbarram no pequeno carro branco. Oxente, se não moram aqui, se passaram a noite ali, e agora trocam beijos na rua, antes de entrarem no carro, o que vieram fazer no apartamento do amigo? Huuum… o amigo viajou, deixando a chave para um domingo dos namorados, cheio de molho, de aís, de juras de amor eterno. Ele cantando para ela, ela cantando para ele. Voz baixa, arrastada, ritmo lento. O violão, sonora testemunha de olhares de dengue, de fogo, de paixão, longe do clima artificial do dia dos namorados, inventado pelo comércio.
Os dois nem precisam de presentes.
Eles são o presente. Um para o outro. As cordas do violão a vibrar o encanto do amor. Os dois, no calor intimista do apartamento do amigo, que se mandou para a serra, em busca do frio de Bananeiras e Areia.
Presidente da Academia Cajazeirense de Artes e Letras
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