Um homem sereno
Por Mariana Moreira
O olhar ligeiro desenhando traços do rosto amorenado pelo sol do sertão como a lembrar um personagem saído das páginas e veredas de Guimarães Rosa. A voz cadenciada como a marcar o ritmo de palavras e vivências ditas com a sabedoria de quem, na vida, conviveu e superou aridez de chuvas, espinhez de mandacarus e valentia de bichos e homens.
Ele fez e faz parte de minhas memórias desde a tenra infância. Com que fascínio escutava, embevecida, a façanha de seu pai e a aposta que faz com uma lagartixa, de também descer de um coqueiro de cabeça para baixo. Uma proeza que cumpriu, mas renegou de não mais repeti-la. Uma proeza que, marcada em códigos genéticos, ficou impregnada no comportamento dos filhos, que tinham, como herança, a capacidade de ver a vida com a sagacidade e a esperteza tão peculiares as narrativas de um Ariano Suassuna.
Assim, conheci Seu Dedé Jerônimo desde a infância. Como vizinho nosso em Impueiras, sempre demonstrou um espírito de vida em comunidade, onde o meu se perde na dimensão do nosso, ou seja, não terei para mim o que excede e falta para tantos que nada tem.
Deste modo, em inúmeras oportunidades, a sua experiência, aprendida na lida com o pai ao cuidar de rebanhos de gado, era partilhada com vizinhos. Quantas vezes não via meu pai buscando sua ajuda para acompanhar vacas em trabalho de parto e que apresentavam complicações. Assim, Seu Dedé Jerônimo vinha, no pingo do meio dia, ou na calada da noite e, com gestos comedidos e fala mansa, falava com o animal em sofrimento e este, como a entender a linguagem humana, se aquietava. E logo, uma nova cria saltitava em currais e oitões de casas.
E quando se falava em pagamento pelos serviços prestados ele esboçava um discreto sorriso e falava: “né nada não, o importante é que a bichinha ficou boa”. Assim, entre gentes e bichos ele cativava amigos, ensinava modos de viver e, principalmente, exemplificava como, enquanto humanos, podemos ser solidários como os animais a quem ele cuidava e restabelecia a vida.
Muitas vezes, pelos corredores de Impueiras, encontrava Seu Dedé tangendo o seu minguado rebanho de nove ou dez vaquinhas. Nos olhos, se refletia a alegria do encontro e, como voz calma, falava por entre um discreto sorriso de canto de boca: “Vou ali levar essas Serenas para a escola”.
Hoje Seu Dedé está tangendo as “serenas” do rebanho de São Pedro pelos corredores e pastagens celestiais. E, calmamente, contando causos e proezas para anjos e querubins.
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