Última viagem do professor Márcio Cartaxo
Certa vez ele montou na bicicleta e ganhou o mundo. Saiu de Fortaleza pela praia. Traçou sua estrada. Já não era um menino nem rapaz. Era homem feito. Deixou-se levar por impulso incontido, fantasias e visões libertárias. Seguiu as curvas do mar. Parava aqui e ali, onde quisesse. Viveu de biscates. Fez-se até cortador de cana. Dedilhou o violão, quando encontrou plateia. Em cada lugar novas emoções. Emoções reais, vividas. Enfim, esbarrou em Salvador, na casa dos primos Riba e Acácia. Que alívio! Márcio foi assim, cheio de surpresas em seus 58 anos de passagem pela terra.
Domingo fez sua última viagem.
Quem sabe, delirante, foi esperar Jeanne Moreau, a velhinha de 89 anos que embarcou segunda feira da França, carregando sua estrela terrena para a eternidade, famosa como atriz e mulher. Não uma mulher qualquer, mas alguém que viveu para amar. E ensinar aos outros pelo exemplo na tela e na vida. Musa de várias gerações, Moreau abriu o coração: “Minha vida foi cheia de experiências para aprender o que é amar”. Ao ver Márcio passar com o violão, ela fez psiu, psiu, vem cá menino, canta pra mim. Márcio não titubeou. Puxou o banquinho da eternidade e cantou baixinho, com um leve sorriso, do seu jeito lindo de falar cantante, para alegria de sua mãe e de Luciano, o irmão mais novo, que logo reconheceram a voz familiar.
Que felicidade!
Márcio Cartaxo Ponte, meu sobrinho, quinto filho de Teca e Paulo, despediu-se daqui domingo passado, em Fortaleza, depois de submeter-se a intervenções cirúrgicas. Intervenções inúteis diante da gravidade da úlcera estourada no aparelho digestivo, em um corpo já fragilizado. Deixou aqui Sofia, 18 anos, fruto do amor compartilhado com Alice. Do pai, Sofia recebeu o pendor para a arte de tocar e cantar e amar o próximo. E foi com violão, alegria e voz que Márcio caiu no gosto da comunidade onde morava.
Conto como se deu.
Os pais e irmãos residiam num casarão no distrito de Capuan, perto de Fortaleza, parede e meia com a cidade de Caucaia. Aprovado no concurso público para professor do ensino médio, Márcio – que cursara filosofia na UECE -, optou por ensinar na Escola Estadual José Alexandre, da qual foi também vice-diretor. Ministrou aulas de matemática, literatura e filosofia, até aposentar-se por doença incurável.
A amizade com o padre Tula levou Márcio à Rádio Comunitária. Francisco Antônio Cavalcanti de Meneses é o nome do vigário da paroquia de Santo Antônio, em Capuan, em cujo território habitam muitos índios tapebas, hoje reconhecidos pelo governo.
Comunicativo, e sempre disponível, já era querido dos alunos e por quase toda a comunidade, carinhosamente tratado como professor Márcio, no colégio e na redondeza, nas missas e festas da igreja, nos programas da Rádio Comunitária. Por isso foi assediado por chefetes políticos locais. Quiseram filiar Márcio a partido político e incluir seu nome na chapa de candidatos a vereador do município de Caucaia.
Qualé, cara, tô noutra.
A resposta espontânea vinha em meio à gargalhada de deboche. Já pensou, tio, eu vereador no meio dessa gente! É certo, não se daria bem com “essa gente”. Márcio era de Deus. Domingo passado, ele foi juntar-se a Ele, levando o violão, disposto a sentar num banquinho, espalhar alegria, bondade, esquisitices de viandante. Ficar ao lado de Deus, de sua mãe, de seu irmão mais novo e de muita gente mais. E até de Jeanne Moreau.
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