Três Guimarães, um livro e os cachorros
Por Francisco Frassales Cartaxo
Otacílio Guimarães Jurema e Sabino Rolim Guimarães eram primos. Netos do coronel Guimarães, nome de rua no centro de Cajazeiras. Dois médicos longevos, de gerações diferentes. O primeiro viveu quase 90 anos, o outro, mais de 81. Eram amigos, mas na política foram mais adversários do que aliados. Até se enfrentaram, diretamente, em eleição de prefeito. Um nasceu em São João do Rio do Peixe, em 1898, Sabino, em Cajazeiras, em 1920. O pai de Otacílio, Victor Jurema, foi juiz de direito em Cajazeiras um tempão e só se afastou obrigado pela lei da “compulsória”, em 1937, por já ter completado 70 anos. Otílio Guimarães foi “eterno” tesoureiro da prefeitura de Cajazeiras. Sério. Incorruptível. Ledor voraz. Dizem que lia até dicionário!
Sabino e Otacílio tinham muitas afinidades.
Eram solteirões, até que o cupido seduziu Sabino, aos 37 anos. Otacílio continuou no cabaré. Otacílio fazia política o tempo todo. Sabino nem tanto, mas adorava um papo acerca da política nacional, estadual e local. E mundial. Otacílio andava cercado de amigos e puxas. Sabino sentava no bar. Os dois gostavam de ler. Um dia, Otacílio emprestou um livro a Sabino, com a recomendação usual: vai e volta. Não voltou. O primo agarrou O Livro de San Michele, que nem cachorro em osso bom de roer.
Só muitos anos depois, revelou o segredo. E o fez de público, quando Otacílio foi homenageado pelo cinquentenário de sua formatura, em 1973. Sabino confessou, mas permaneceu de posse do velho exemplar da obra do escritor e médico sueco Axel Munthe (1857-1949). A partir daí, sem mais remorso, imagino eu.
Esta semana tive uma surpresa.
O Livro de San Michele, aquele mesmo exemplar não devolvido, está com outro médico, Sabino Rolim Guimarães Filho. Exemplar publicado na década de 1930, primeira edição saída no Brasil, quando na Europa já se tornara best-seller, onde circulava desde 1929. Muito velho, está em vias de se desmanchar, por isso, seu atual dono o envolveu em protetora embalagem plástica. Nele se pode ver a legível assinatura de “dr. Otacílio Jurema 1937”. Quando a ACAL tiver biblioteca, vou pedir que o livro lhe seja doado.
Afinal, que livro é esse?
Foi escrito por um médico sueco que atuou em muitos lugares da Europa. Na Itália, ele construiu uma casa singular, num recanto histórico na região de Capri. Axel Munthe já era famoso, como médico e escritor, velho e cego, quando decidiu escrever sua biografia romanceada. Aluno e amigo de Jean Martin Charcot (também professor de Freud), narra casos clínicos, intrigas, peripécias vividas ou fantasiadas em sua longa trajetória de médico, que viveu antes do uso de antibióticos. Cheio de lições de vida, em particular, para os profissionais da saúde, suas reflexões são um atrativo especial.
Há outro. O apego aos animais.
Era tão forte que comprou um pedaço de terra, num alto próximo a sua casa, e o transformou em “área de proteção ambiental”. Por quê? Para garantir a livre passagem de aves migratórias! Sua dedicação aos cachorros é comovente. Descreve cenas e situações emocionantes… e se diz veterinário porque cuida também da saúde de animais.
Daí me lembrei de Otacílio Jurema.
Otacílio passou os anos finais de sua longa vida cercado de cachorros de estimação, fieis amigos. Amigos de verdade. Mais do que muitos daqueles homens que eu via passar em suas andanças pela cidade, no meu tempo de menino em Cajazeiras.
Presidente da Academia Cajazeirense de Artes e Letras – ACAL
Os textos dos colunistas e blogueiros não refletem, necessariamente, a opinião do Sistema Diário de Comunicação.
Leia mais notícias no www.diariodosertao.com.br/colunistas, siga nas redes sociais: Facebook, Twitter, Instagram e veja nossos vídeos no Play Diário. Envie informações à Redação pelo WhatsApp (83) 99157-2802.
Deixe seu comentário