Tortura e morte no Rio do Peixe
Por Francisco Frassales Cartaxo
O escravo Miguel, fujão, preguiçoso e ladrão, levou mais uma grande surra, com um xiquerador de relho cru que tinha um nó na ponta, aplicada a mando de seus donos pelo escravo Francisco. Apanhou muitas vezes, com grilhões nos pés, até no trabalho. Um dia, o escravo Francisco usara toda a sua força, deixando Miguel no chão todo ensanguentado. A senhora ordenou: botem sal pisado nas feridas. Mesmo assim foi trabalhar sob chicotadas do senhor. De volta da roça, com sede, bebeu a própria urina. A agonia durou quatro dias até a morte.
O que narro não é fantasia.
Foi extraído do Processo-crime: morte do escravo Miguel e ferimentos graves na pessoa da escrava Lúcia, aberto, em 1881, em São João do Rio do Peixe. Assim está no livro Senhores e escravos do sertão da Paraíba (1850-1888), de Wlisses Estrela.
Quem eram os réus? Dr. Francisco José de Sousa e sua esposa, Ana Jusselina de Morais, e os escravos, Francisco e Maria. Dr. Sousa, dono das fazendas Livramento e Recreio, era advogado, formado no Recife, em 1867, foi promotor e juiz municipal. Casara com a viúva do rico fazendeiro, Antônio Leite de Morais.
E o juiz do feito?
Manuel Marques Mariz (pai de Celso Mariz e filho do padre José Antônio Marques da Silva Guimarães, chefe do Partido Liberal de Sousa). O juiz municipal conduzia o inquérito, mas o julgamento cabia ao juiz de direito, no caso, Manoel Barata de Oliveira, que presidiu o primeiro júri em 1882, comarca de Sousa. O processo andou entre o sertão e o Tribunal da Relação, no Recife, com absolvições e apelações. Até o juiz de direito de Cajazeiras, Henrique Hardman, aparece para absolver os réus. Inconformado, dr. Barata apela de novo. Depois de idas e vindas, já em março de 1888, outro juiz, Miguel Peixoto de Vasconcelos encerra o processo. Ninguém foi preso.
O foco no processo-crime é meu.
Wlisses Estrela tem outros objetivos em sua dissertação de mestrado. Um trabalho sério. Consultou livros de batismo, casamento e óbitos, inventários e outros documentos, atendendo as exigências do rigor acadêmico. Isso não cabe nesta crônica. Importa realçar a mexida nos costumes do regime escravocrata no sertão, aliás, de poucos escravos em confronto com regiões de lavouras de exportação. Nem por isso, irrelevantes para conhecer nosso passado, a fim de destrinchar as relações promíscuas entre senhores de terras/aparelho judiciário e policial/partidos políticos. Vale dizer, viajar nas entranhas do poder local.
Presidente da Academia Cajazeirense de Artes e Letras – ACAL
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