Todas as paixões
Por Mariana Moreira – E todos esperam que, nos parcos escritos, que circulam nas páginas dos jornais em singelas crônicas, abundem palavras vãs sobre sentimentos artificiais, enquadrados nos rituais e etiquetas sociais, e que em nada favorecem nossa perspectiva humana. Aos invés de palavras organizadas em votos de paz e saúde para os dias que se ensaiam, meu desejo é que todos consiguam expressar, em gestos, atitudes e pensamentos, a plenitude do verdadeiro sentido do apaixonar-se. A paixão não como sofrimento, tortura, dilaceramento; mas, arrebatamento, entisuasmo, exaltação.
A paixão que nos ensina o sentido do amor enquanto laço de unidade entre irmãos. É preciso estar apaixonados para enxergarmos o outro enquanto semelhante na figura maltrapilha do homem de rua, do desvairado pela droga, do dilacerado pela prostituição, do deformado pela doença, física e/ou social. A paixão que, no sereno rosto de Teresa de Calcutá, acolhia, abraçava, aconchegava, pelas ruas, becos e misérias, deserdados da sorte, do mundo, dos poderes. Paixão de não se enojar com os fétidos odores que contagiavam narinas e sentidos com as purulentas secreções que nossa racional expressão de desenvolvimento esconde em monturos e dejetos que, de vez em quando, se revelam em Bhopal e Mariana.
A paixão pela vida que se extingue em espécies encantadas, definitivamente, pela irracionalidade de um crescimento econômico depredador. Amar o cão abandonado na rua, o galo de campina em sua teimosia de sobreviver a gaiolas, arapucas e contrabandos. A paixão em silenciar motosserras e apagar queimadas anuladoras de serrados, caatingas, amazonias. Paixão de abraçar as sementes da paixão que, nas mãos e silos dos pequenos agricultores, buscam enamorados em solos calcinados e agrestes de nossos sertões, na resistência cangaceira aos transgênicos receitados como alternativa única para a produção de grãos e vida.
O estar em permanente estado de paixão nos leva, semanalmente, a dedilhar teclas e chafurdar reminiscências, ideias, posturas e, em prosa, preencher o imprevisível espaço do branco com tipos, símbolos, significados. A paixão de escrever mesmo quando a fadiga e as atribulações cotidianas ofuscam o discernimento e turvam a escrita que teima em não seguir um traçado lógico. Ora, mas a paixão não se casa com a lógica. Essa última, aliás, “pariceira” de um tempo de racionalidade exacerbada que classifica a paixão como sintoma de doença, transgressão, desvio. E assim, seguindo a trilha da Clarice Lispector, preservo a paixão de escrever porque é e “era preciso tentar escrever sempre, não esperar um momento melhor porque este simplesmente não vinha”. E, valendo-me de Franz Kafka, ouso dizer que “uma pessoa só devia permitir fixar na escrita a sua autopercepção quando o puder fazer com a maior integridade, com todas as consequências secundárias e também com toda a verdade”.
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Portanto, o desejo que me move é que, em nenhum momento de nossa existência, nos desgrudemos da nossa capacidade de apaixonar-se, de forma verdadeira e singela. Com todo ardor, enlevo, entusiasmo. Afinal, “De que vivermos se não de paixões?”, nos interroga Carlos Drummond de Andrade.
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