Saudade do meu avô
Ando com saudade de meu avô. Dos dois, para ser mais preciso. Às vezes, me surpreendo nos braços do major Higino, que faz gracinhas no neto magricelo. Sou um dos últimos da fila dos muitos rebentos dos dois filhos do casamento de vovô com a jovem viúva, Mãe Nanzinha, no sítio Prensa: Cristiano e Crisantina. A vida é cheia de visões. Ele brinca comigo, fala que queria me ver manipulando drogas, aviando receitas, vendendo remédios na sua botica, instalada em 1875 com autorização do imperador Pedro II. Que orgulho, hein, vovô!
Doutor Gino (assim o chamavam, mas a sobrinha Marilda Sobreira preferia “doutorzinho”), fala alto, o neto nos braços que nem um enfeite vivo, buliçoso, talvez, com cara de choro, ele que se afeiçoara às mãos, aos braços, ao carinho das moças da Prensa. Jeitosas que só elas para cuidar do décimo filho de dona Isabel. Pouco importam essas verdades ouvidas dos adultos. Para mim, interessa agora a enorme saudade de meu avô, major Higino Rolim.
Preciso desafogar a alma.
Tirar do peito a dor do tempo. O grito do coração. Mas essa mania besta de me aferrar aos fatos históricos me azucrina… será que ele era mesmo major da Guarda Nacional? Ou apenas uma “lenda” feito o coronel Guimarães – José Ferreira Guimarães, o Cazuza Marinheiro? Entre os papeis velhos, guardados por minha irmã, Joaninha, restou apenas uma carta-patente de alferes! Alferes Guimarães! Ora, alferes era o primeiro degrau na escala hierárquica do oficialato da Milícia Cidadã… deixa pra lá, meu avô era major Higino e pronto. Tal qual padre Cícero é santo, na boca do povo, até aqui, à revelia da cúpula da Igreja.
Isso me lembra o outro avô.
E faz aumentar a saudade. Major Zuza da Inácia também era oficial superior, pelo tratamento de sua gente. Nem preciso pesquisar. José Joaquim de Brito, parente do destemido coronel cearense da lendária Lei Chico de Brito. O pai de minha mãe apenas ocupou o cargo de subdelegado de polícia num distrito perdido no sul do Ceará. Azar dele, pois foi nessa condição que a Sedição do Juazeiro (Guerra de Crato contra Juazeiro ou a Guerra de 1914) o surpreendeu.
Muitos anos depois, ele me contou sua odisseia. Parece que escuto a voz arrastada de quem busca nas profundezas da memória a razão de sua desdita. Deitado na rede, o peito nu a procura de brisa para o desabafo, acariciando meus longos cabelos de caçula, vovô Zuza me disse: careço de contar uma história, Frassales, realçando o apelido, que meu pai me pregou antes mesmo de registrar o nome no Cartório de José Coelho. Eles queriam me matar. Era tempo de guerra. Passei dias vivendo nos matos, voltava tarde da noite. Sua mãe era menina, maior do que você é hoje, mas sua tia Inacinha, já mocinha, ia levar meu de comer. Um dia eles invadiram a casa. Os fanáticos. Bateram em Damião. Quase morreu, coitado, de tanta pancada. Mas sua vó não se intimidou. Ao escutar os tiros de longe, deu a ordem: Não quero ouvir choro, aqui ninguém vai chorar. Só soube disso à noite quando desci do serrote. Foi por isso, que vendi as terras e me mudei pra São João do Rio do Peixe. Antes fui a Juazeiro, pedir um salvo-conduto a padim Ciço, senão…
O avô Zuza arfava. Prendia os lábios. Eu notava seu peito subir e descer, a cada frase pronunciada, a alma no galope da narrativa.
Que saudade de meu avô Zuza!
P S – Li esta crônica para minha irmã Joaninha. Oxente, quando você nasceu, vovô já tinha morrido, Frassales, você tá caducando?
Presidente da Academia Cajazeirense de Artes e Letras – ACAL
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