Saudade de minha tia
Por Francisco Frassales Cartaxo
Vi no noticiário das desgraças do planeta, em ambiente de guerra mundial, que Fernando Henrique Cardoso fraturou o fêmur. Logo lembrei de minha tia Inácia, prostrada na cama com a perna quebrada, a repassar sua longa vida desde que nascera no Cariri cearense, quando padre Cícero Romão Batista reinava na igreja e na política. De lá veio esbarrar em São João do Rio do Peixe, e pouco depois em Cajazeiras, o pai escorraçado por fanáticos que viram no major Joaquim de Brito um inimigo.
Bem mais tarde, no meado do século XX, Fortaleza, ainda com jeito provinciano, recebeu minha tia, de passagem para o Rio de Janeiro, a cidade grande. Um desafio para a matuta já entrada nos anos. Horas e horas no super constelation da Panair até o encanto de Copacabana, na época em que Dick Farney a exaltava com sua voz de saudade. Um alumbramento para quem mal conhecia a praia de Iracema e a bucólica Praça do Ferreira.
A maravilha foi abafada pela alegria de ter carteira assinada. Isso mesmo, com mais de 50 anos, Inácio Sales de Brito, cearense de Várzea Alegre, doméstica desde sempre, se viu cidadã, condição que não lhe dera o título eleitoral, usado para fortalecer os coronéis nordestinos e, mais tarde, render-se à sedução de Carlos Lacerda. Exibir-me a carteira do Ministério do Trabalho foi o que mais lhe fez brilhar os olhos. Brilho intenso que também ostentava ao falar da própria desenvoltura: ir de ônibus da Tijuca a Copacabana, tomar sorvete em lugar qualquer do seu caminho, no passo leve de quem alcançara o paraíso. Coitada! Esse paraíso pouco durou, forçada que foi a retornar ao Ceará.
O outro paraíso, o definitivo, já conquistara por ser quem era. Nem se preocupava com ele, na tranquila certeza do passe adquirido. Vi essa serenidade na última vez que conversamos. Magrinha, da cama já não se levantava, salvo para experimentar a mortalha. Mortalha? Um hábito da Ordem Terceira de São Francisco, preparado pela irmã costureira, Maria Sales, que o fez e refez, voltou a refazer, até que tia Inácia disse:
— Pronto, agora posso morrer, já vivi demais… é só esperar que Ele me chame.
Tia Catia me falou com o olhar cheio de brilho. Faz muitos anos, mas ainda guardo na memória o timbre de sua voz fraca, o cheiro do chá de cidreira, seu jeito sereno como nunca me fora possível sentir antes da morte. Imediatamente antes da morte. Nem por ouvir falar. Passo e repasso em minha mente, agora, tudo isso.
Presidente da Academia Cajazeirense de Artes e Letras – ACAL
Os textos dos colunistas e blogueiros não refletem, necessariamente, a opinião do Sistema Diário de Comunicação.
Leia mais notícias no www.diariodosertao.com.br/colunistas, siga nas redes sociais: Facebook, Twitter, Instagram e veja nossos vídeos no Play Diário. Envie informações à Redação pelo WhatsApp (83) 99157-2802.
Deixe seu comentário