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Mariana Moreira

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Reminiscências radiofônicas II

15/07/2016 às 00h37

A presença da Rádio Alto Piranhas continua marcando minha vida desde a mais tenra infância. Quando os primeiros raios do dia tingem o nascente de dourado e um canto de galo rompe a aurora o som chiado do velho radio de pilha espalha pelo ambiente sons e versos de forrós que se misturam ao cheiro da maravalha incendiada por papai ao dar vida ao fumegante fogão de lenha que aguarda a primeira marmita de café.

Na adolescência as manhãs tornam-se mais claras e apaixonantes quando a voz límpida e destemida de Ica Pires anuncia o seu Minidiscoteca Dinamite com o bom dia enfaticamente repetido. E minha imaginação desenha traços e contornos daquela mulher que, atrevida, se enfronha num ambiente eminentemente masculino, anunciando mundos estranhos ao cotidiano e ao universo femininos. Uma voz que reclama, denuncia, cobra serviços e atenção, sobretudo para grupos e camadas que teimam em existir a revelia do descaso, da omissão e da manipulação de grupos políticos tradicionais. E aquela mulher me inspira sonhos e projetos de amanhã, mesmo que apenas pela intermediação das ondas hertzianas.

À noite, o sono é dividido e embalado pela polêmica, pelo debate, pelos mexericos que movimentam e sequenciam as manobras do universo da política, mesmo em tempos restritos e limitados pela ditadura. Nos microfones da RAP, “a namorada da cidade”, Zeilton Trajano, coadjuvado por Júlio Bandeira, atiçam os sertões com as fagulhas disparadas dos microfones do Discoteca Dinamite. Entrevistas, revelações de conchavos e acordos, denúncias vão dando o formato do programa e alimentando as rodas de conversa que agitam a esquina da Lanchonete São Braz. Um tempo em que o sinal de televisão não supera um embaçado mundo de chuviscos o rádio de pilha é a presença assegurada nas rodas formadas nas calçadas no aguardo do aracati nas modorrentas noites de verão sertanejo. Na soleira das janelas o rádio espalha notícias e aglutina conversas.

Também empolgam as transmissões dos festivais da canção que agitam o mundo cultural da cidade e da região. Associado a realização da Semana Universitária o festival ganha espaço e destaque na programação da Rádio Alto Piranhas, que reverbera e ressoa disputas e tendências. A opinião dos jurados, as vaias da plateia, as torcidas organizadas misturam-se em sons difusos de válvulas lerdas aliadas a pilhas gastas, tornando mais sedutor o espetáculo da audiência radiofônica.

Também pelas ondas da RAP ouve-se, no final da programação do dia, o MPB em nova dimensão. Desafiando tempos sombrios de censura, repressão e desvario político Nonato Guedes, Josival Pereira, Zé Alves e outros veiculam músicas de Geraldo Vandré, Paulinho da Viola, Chico Buarque, Paulo Sérgio Pinheiro, Caetano Veloso, Gilberto Gil, acompanhadas de comentários e mensagens, algumas cifradas, e decodificadas pelo entendimento parco de uma conjuntura política perversa e arrogante.
E a RAP, em sua trajetória cinquentenária, é presença intrínseca em minha vereda de vida.

Forjando desejos, cravando sonhos ou, apenas, construindo memórias.


Os textos dos colunistas e blogueiros não refletem, necessariamente, a opinião do Sistema Diário de Comunicação.

Mariana Moreira

Mariana Moreira

Professora Universitária e Jornalista

Contato: [email protected]

Mariana Moreira

Mariana Moreira

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